Tem vezes em que lamento a minha teimosia de não querer usar celular. A principal delas é quando me deparo com uma cena incrível e não tenho o maldito aparelho para fotografar.
Aconteceu ontem mesmo: fazia uma corrida quase no final do dia, maltratando as articulações após uma semana inteira de letargia, quando tive uma surpresa na estrada.
Estava para lá da praia do Estaleiro, quando o curto trecho pavimentado volta a dar lugar à estrada de terra que segue até a Ponta do Araçá. Em uma curva, dei de cara com um enorme gavião que, quase no meio do caminho, devorava o que parecia ser uma cobra.
Atrapalhado o seu jantar, a ave fez um voo curto até uma árvore no lado esquerdo da estrada, enquanto eu constatava se tratar de um lagarto, ou o que havia sobrado dele: pouco mais que uma espinha dorsal e o couro escamoso.
Era um pássaro majestoso como uma águia americana. Diria que tinha uns 40 centímetros do bico à cauda (desculpe se exagero; nunca fui muito bom em estimar medidas no olho), o topo da cabeça parecia ter uma faixa branca (ou seria preta?), a ponta da cauda enfeitada com uma listra da mesma cor.
Quis perguntar ao ciclista desconhecido com quem fazia uma informal disputa (ele havia me ultrapassado na subida do Caixa D’Aço; eu o alcancei mais adiante, quando parou para esvaziar os pneus da bike, voltei a ser superado pouco depois do encontro com o gavião e o deixei para trás quando parou para apreciar a vista da Ponta do Araçá; me superaria definitivamente dois quilômetros depois) se tinha visto a ave, mas apenas dei a volta no fim do trajeto e comecei a subida de retorno.
Esperava encontrá-la no mesmo lugar e quem sabe definir que bicho afinal era, mas já não estava. Apenas o que restou da carcaça jazia na estrada (qualquer chance de vê-la foi frustrada por um automóvel que cruzou o local minutos antes).
Em casa, tentei desvendar o mistério. Procurei no Google por aves de rapina encontradas no Estado. Imaginei se poderia ser um gavião-real, o rei das aves de rapina do Brasil, cuja imagem tinha certo paralelo com o que vi (tirando o curioso penacho meio mohawk), mas é pouco provável: embora já tenha sido avistada em Santa Catarina, a harpia é bicho enorme (pode chegar a dois metros de envergadura), vive nas matas mais altas, em especial na Amazônia, e está em risco de extinção.
Passei ao segundo candidato, mais realista, o gavião-pombo-pequeno. Conferi que seu habitat é a Mata Atlântica e que, embora se alimente principalmente de insetos, eventualmente ataca pequenos animais. Entretanto, embora o padrão na cauda se assemelhasse ao da ave que vi, o gavião-pombo é predominantemente branco. O outro não parecia assim.
No final das contas, talvez fosse apenas um carcará.
Devido à ausência de prova documental, jamais saberei o que realmente era. Ao menos, posso fazer um desenho da cena, ainda que meu rabisco nem de longe represente a cena que ficou gravada na memória. Mas é o melhor que pude fazer, pessoal.
Ah! Sobre o título do artigo, devo dizer que o fiz como homenagem (os haters dirão “plágio”) a uma das fotografias de que mais gosto, de autoria do fotógrafo e historiador Boris Kossoy. Você pode vê-la aqui.
E caso tenha gostado deste pequeno relato de corredor de fim de semana, talvez se interesse por outros textos relacionados às minhas experiências “on the road”. Neste post, por exemplo, você desvenda as peripécias de um meia maratonista de um joelho só. Boa leitura!
Isso que eu chamo de “saber viver”, compartilhar alegria…parabéns para todos os envolvidos
Valeu, Ti! Já estava ficando feio o tempo que levou pra concluir. Mas aí está. Abraço!
Dil e sua escrita precisa. Demorou mas parece que falamos hoje ou melhor dizendo do agora. Parabéns pelo texto, obrigado…
Lindo amigo! Baita texto e matéria!
O Daniel é um cara fundamental na promoção da cultura catarinense. Ele faz um trabalho sensacional há anos.
Evaldo Guerreiro
A ligação entre a tecnologia e a natureza, entre aquilo que aceitamos como naturalizado e as prisões produzidas pela própria tecnologia e o modo de vida que nos é imprimido nessa dinâmica contemporânea, fazem com que alguns artifícios, como celular, nos tragam vantagens e desvantagens. Como “fugir” dele e de suas artimanhas, quando muitos sabem que seus aplicativos nos viviam, poderia-se dizer, até dominam? E como conseguir viver por for dele, sem as “facilidades” e relações que ele nos apresenta?
A virtualização das relações compõem um tecnologia social além da máquina, que apenas é componente desta. Vejo essa virtualização, como superando aquela pré moderna que nasce com o mercado.
Mas falo isso, apenas porque gostei desse conflito e da escolha do autor.
Queria ter a mesma coragem de viver sem o smartphone.
Abraço amigo!
Alcides Mafra
Fala Evaldo,
essa minha vida apartada da tecnologia é só relativa, como podes imaginar. Continuo sem celular muito por preguiça, mas por conforto. Enquanto as circunstâncias não me impuserem o uso, continuo assim. Grande abraço e valeu por aparecer por aqui!
Marcelo Sabin
Muito bom!
Alcides Mafra
Valeu Marcelo! Esta é uma das razões pelas quais, diferente de usar celular, não deixo de correr: mesmo que o trajeto seja sempre igual, a paisagem é sempre diferente. Grande abraço.