Projeto Som&Sol ocupa a Praça com gente, música e artesanato
A tarde de domingo (17) não prometia absolutamente nada. A cerveja do almoço pesava nas pálpebras e o rescaldo da chuva que tivemos pela manhã inspirava um clima de outono antecipado. Estava nublado e sequer se via fila na avenida, apenas um transitar ocasional de veículos de um lado para o outro. “Que tarde para tirar um cochilo”, provocava, já em “modo avião”, o subconsciente. E, de fato, ele ganhou a parada — pelo menos até que, de um pulo, eu saísse da cama com a urgência de quem tem uma pauta a cumprir. Afinal, era dia de feira.
É feira, mas pode chamar de ocupação do espaço público. É desse jeito que Bruno Juliano Pereira, de 30 anos de idade, vê a coisa. Ele e a esposa Aline Battistotti, de 29, são os organizadores do Som&Sol, que pela sexta vez usou a Praça da Bandeira, em Porto Belo, como ponto de encontro entre artesãos de várias procedências — e seus produtos — e a população local. Ali, onde há o que se poderia chamar de anfiteatro (embora soe pomposo), bandas garantem o devido fundo musical. Não faltam a cerveja artesanal nem os famosos foodtrucks.
Mas estamos no último domingo do verão e o clima é de final de temporada. Por isso, não se vê tanta gente como das outras vezes. Também há um número menor de estandes, se compararmos com a última edição, quando 65 expositores (mais os trailers de comida) compareceram. Desta vez, 56 feirantes atenderam ao chamado. Tudo, porém, dentro dos planos dos idealizadores.
DE ADVOGADOS A FEIRANTES
Bruno é natural de Porto Belo, mas mora em Tijucas há uma dúzia de anos. Aline é tijuquense. Ambos são formados em Direito. Ela trabalhou em escritório de advocacia por dezessete anos, enquanto que o marido passou oito dos últimos dez dando expediente numa gráfica — em paralelo ao trabalho como DJ. Tudo isso até cerca de dois anos atrás, quando executaram uma manobra no meio da estrada e mudaram o rumo da situação. Hoje, vivem de delicados arranjos de flores e singelos vasos de plantas. Seu escritório, uma simpática Kombi com a logo da empresa (Flora) estampada na porta, leva-os às feiras pela região e à porta de igrejas (lembrancinhas de casamento são sua principal fonte de renda).
“Eu gosto disso tudo”, afirma Bruno, que manteve seu trabalho de disc-jóquei e incorporou a função de promotor de eventos. Um de seus projetos é justamente o Som&Sol, que começou em 2017 com apenas três feirantes ali em Tijucas. Mais duas edições e a feira mudou de casa. Ocorreu uma vez em Bombinhas e outras seis vezes em Porto Belo. A ideia não é fincar raízes por aqui, e sim visitar outras cidades. É inegável, porém, que o evento encaixou como uma luva na paisagem do lugar.
“Queremos manter o primeiro semestre só focado em Porto Belo”, antecipa o empresário itinerante, que não mira no potencial turístico do lugar: “A ideia não foi pegar o turista, mas criar uma opção para ocupar a praça, levar a arte e o artesanato, com DJs com uma roupagem mais acessível e música autoral”, detalha o seu ideal. Para ele, o mais importante é fazer com que as pessoas daqui conheçam os produtos feitos pelas mãos de seus conterrâneos (e de artistas de outros lugares também): “Tem gente que acha que é só paninho, mas tem uma variedade enorme”, garante.
A PORTA DA RUA
Não só a variedade de produtos marca um dia de feira, como a de pessoas. O perfil de quem vive dessa atividade ou encontra nela um reforço no orçamento é sortido: tem gente jovem e idosa; descolada e tradicional. Ao lado do colorido de artigos tão diversos quanto antiguidades, roupas de brechó, discos, colares e pingentes, os feirantes representam um atrativo visual à parte. Ainda que heterogêneos, formam uma comunidade nômade que está sempre se esbarrando por aí. Só para se ter uma ideia, compareceram ao 10° Som&Sol artesãos e comerciantes de Blumenau, Florianópolis, Penha, Balneário Camboriú, Bombinhas, São João Batista e Tijucas.
Faz uns oito anos que dona Cecília Vargas aderiu a esse fluxo. A viúva portobelense, de 60 anos de idade, expõe seu artesanato no circuito de feiras de Brusque, Blumenau e Florianópolis. Eventualmente, viaja até Passo Fundo (RS), rachando a despesa com uma parente que mora em Navegantes. “Compensa mais do que ter emprego fixo”, ela assegura.
Cecília faz costura criativa e bordado manual e usa esse talento não só como forma de complementar a renda da pensão, mas principalmente como desculpa para não ficar em casa. Ela participa da associação de artesãos do município, que reúne dezesseis artistas e manteve as barracas montadas durante os finais de semana do verão. A expectativa é que a entidade repita a atividade todo o primeiro final de semana dos meses seguintes. “É uma outra família”, considera.
DUPLA JORNADA
Um período de reclusão forçada foi o responsável pelo ingresso de Fernanda Monteiro, 41, no mundo das feiras. Faz três anos, a professora sofreu um acidente doméstico e teve uma fissura óssea no joelho da perna direita. Precisou ficar oito meses parada e, como havia esgotado suas possibilidades de distração, começou a operar um tear e a experimentar a técnica de tecelagem conhecida como macramê. As amigas gostaram do que ela criou e incentivaram-na a divulgar no Instagram. Dali para a atividade ocasional de feirante foi um pulo.
“O astral é superlegal”, aprova Fernanda, de cuja barraca tem uma visão privilegiada da área musical da feira (neste momento, o Duo Canoa está encerrando sua performance; logo mais, a banda de stoner rock Sabatana assumirá as caixas de som). Para ela, o ideal seria que a iniciativa fosse mensal, para criar na população o hábito de vir até a praça e valorizar a arte manual. “As pessoas não entendem que dá trabalho”, julga. Fernanda faz um paralelo com outra feira de que participou, na praia de Gravatá, em Navegantes, onde esse entendimento parecia mais consolidado: “É um olhar diferente”.
Enquanto conversamos, um ou outro cliente aparece, consulta preços e até uma venda é feita. Mas não é um dia auspicioso (o mês caminha para o final e muitos bolsos já esvaziaram). Fernanda sabe que o que produz é supérfluo e só vai ter saída se o cliente dispuser de um excedente de caixa. “Tem que ser realista”, pondera — sem esquecer, no entanto, que a renda do artesanato já foi fundamental para seu balancete mensal.
Independentemente de questões econômicas, a professora não pretende abandonar o circuito de feiras. “Por que eu gosto”, diz, lançando um olhar interrogativo ao marido, Fernando Casas, 40. O também professor não compartilha desse entusiasmo: acha essa vida dupla cansativa. Logo mais, às 21 horas, eles terão de embrulhar os artigos que sobrarem, desmontar o estande, transportar tudo até o carro para, enfim, irem para casa, onde a filha Betina os espera. “E amanhã de manhã o bicho pega”, ele acrescenta.
Vida de feirante.
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