Categoria: Contam os Antigos

Praia coberta de prata

Se em 2005 os cardumes passaram longe da costa bombinense, preferindo as malhas em alto-mar da frota industrial, neste ano de 2006 a temporada de pesca de tainhas começou cedo e foi, nos primeiros dias, marcada por surpreendente abundância. Maio, um mês desfavorável a esse tipo de pesca por ser normalmente quente, trouxe frio e muito peixe para os costões e praias do município. A comunidade fartou-se de tainhas e os turistas ocasionais divertiram-se acompanhando os nativos nos arrastões, molhando as canelas na beira d’água e emprestando braços para facilitar a tarefa de puxar as redes para terra. Dentro delas, centenas de corpos frenéticos tingiram a praia de prata nesse maio atípico, de safra recorde. Mas, em junho, o ímpeto diminuiu.

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Seu Naro

Seu Naro observa as pessoas que andam de um lado para outro na praia da Sepultura e não gosta muito. “O peixe é como a gente”, ele diz, “aonde um vai, todos os outros querem ir”. Ou seja, se alguma tainha se sentir ameaçada pela presença de um turista na beira d’água, pode sumir e levar o cardume inteiro com ela.

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Seu Naro: “Aonde um peixe vai, os outros vão atrás”

Para se chegar a esta praia, é preciso seguir a avenida que atravessa Bombinhas até o seu final. Nesse ponto, descendo, chega-se ao Retiro dos Padres, nome mais comum da praia dos Ingleses. Antes, um descampado no lado esquerdo da estrada – com uma porteira obstruindo um caminho que se perde no mato – indica a entrada da Sepultura. Do lado da porteira, há espaço suficiente para uma motocicleta passar. A estradinha escorrega pelo morro, fazendo voltas. Um vira-lata deitado adiante, próximo de uma casa onde dois pedreiros trabalham, dá a sensação de se estar invadindo terreno particular.

Uns metros pelo caminho ladeado de mato e aparece um espaço gramado, no fim do qual há uma garagem aberta, de alvenaria, com espaço para três ou quatro carros. Atrás dela eleva-se um monte coberto de vegetação. Este molhe natural tem, à esquerda, uma fina faixa de praia, três barracões de pesca, uma ou duas casas. À direita, um costão pedregoso e o mar aberto.

De costas para quem chega, diante da garagem, seu Naro conversa com alguém pelo aparelho celular. Concorda, resmunga algo, desliga. Os barracões ali embaixo pertencem a ele, herança familiar, assim como este ponto de pesca. São três construções de madeira, seis metros de largura por doze de comprimento cada um. Entre o primeiro e o segundo, há umas fileiras de traves baixíssimas de varas de bambu, parecidas com obstáculos de corrida, só que rentes ao chão. Eram usadas para se esticar a rede ao abrigo da umidade, hoje servem apenas “para contar história”, como explica o proprietário.

Acomodados na descida do monte, os barracões parecem incrivelmente baixos, mas um homem de boa estatura caminha sem problemas debaixo desses telhados antigos. No do meio, uma porta lateral de correr, que mais parece uma janela, dá acesso ao interior. Seu Naro a empurra, passa para o lado de dentro e convida a entrar. O local está repleto de tralhas: velhas canoas, redes e outros apetrechos de pesca sem uso, tudo empoeirado. Nos fundos, dois gatos aproveitam uma tábua solta para invadir o recinto – devem usá-lo como abrigo. Rafi, um vira-latas pequeno, de focinho grisalho e pêlo avermelhado, companheiro do velho pescador, não dá bola aos intrusos.

Adiante, meio para fora na porta da frente escancarada, está a “Aventureira”, impetuosamente pronta para ir ao mar. É comum esta velha embarcação de 7,5 metros assumir a dianteira nas pescarias. Feita de canela-garuva, está equipada com redes para o cerco próximo da praia. Seu pai a adquiriu em 1930, mas Naro sustenta que ela possua entre 200 e 250 anos.

Uma vez, em Navegantes, Aventureira sumiu por quatro anos, depois apareceu novamente. Além desta, há nos abrigos outras cinco canoas, feitas de madeiras diversas: figueira, cedro, guarapuvú. Uma aposentada no fundo do barracão está amarelada pelo acúmulo de pó. Em seus dias de glória, conduziu o dono em viagens até Blumenau, Luiz Alves e outros municípios daquela região. Seu Naro e a tripulação saíam às seis da manhã, navegavam até às 10 da noite. Demoravam até quinze dias para voltar, período em que se vendia peixe e se comprava mantimentos para as vendas de Bombinhas. Uma vez, ele trouxe cachaça, mas se “incomodou” com um tripulante interessado em degustar a carga. Aí, não trouxe mais.

CAVERNA DO CABO

Desse tempo, ficou a canoa para testemunhar. E não só ela. Naro é um colecionador de relíquias, seu barracão um verdadeiro museu. Um remo aqui, umas boias de madeira amontoadas num canto, um rolete ali atrás, essas coisas revelam um pouco do passado de Bombinhas. E se tem algo que fascine este senhor, é contar histórias de sua terra. Embriagado com essa perspectiva, sai do barracão e procura no meio do mato o velho muro feito pelos escravos, motivo da mortal desavença que deu nome à praia. Encontra-o e caminha pelo morro acompanhando a construção de pedras até o seu final. Com Rafi seguindo na frente, sobe o elevado de terra, chega ao espaço gramado e indica, no outro lado, no meio do costão, um lugar misterioso, a Caverna do Cabo. Desce até lá, pulando de uma pedra a outra. Um escorregão inadvertido, um tombo, mas Naro já está de pé, sobe algumas rochas altas, chega a uma gruta formada pelas rochas.

Aqui, relatou sua avó, escondeu-se um soldado do Exército. Isso faz muito tempo. Vivia maltrapilho, alimentando-se de mariscos e peixes. Segundo contou no povoado, desertara durante a batalha decisiva da Guerra do Paraguai, em Cerro Corá, ao norte daquele país, travada entre fevereiro e março de 1870. Nela morreu o ditador paraguaio Solano López.

O “cabo” relatou que, na fuga, escondido próximo de uma fazenda, bebeu água misturada com sangue. Ele teria chegado à península vindo da região de Joinville, seguindo sempre pelas matas. Naro acredita que ele tenha achado o antigo “caminho dos índios”: Peabiru.

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Seu Naro, em seu rancho de pesca na Praia da Sepultura (fotos: Márcia Cristina Ferreira)

A jornalista paranaense Rosana Bond escreveu um livro a respeito dessa espécie de Caminho de Santiago tupiniquim. Em A Saga de Aleixo Garcia (1998), relata a façanha de Garcia, supostamente o primeiro habitante europeu de Santa Catarina. Em 1522 ou 1523, esse marujo português, sobrevivente de uma malfadada expedição liderada por Juan Diaz de Solís, que foi comido por guaranis, conduziu um grupo de índios carijós e mais alguns companheiros sobreviventes desde a ilha de Santa Catarina até o Alto Peru. Teria realizado a espantosa façanha de ser o primeiro homem branco a conhecer o reino dos Incas, antes mesmo do conquistador espanhol Antônio Pizarro. Voltou de lá forrado de ouro e prata, mas morreu no caminho.

Aleixo Garcia teria usado a estrada pré-colombiana chamada Peabiru (na língua dos nativos, “caminho de grama amassada”), uma rota sagrada dos índios guaranis que fazia ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, passando por Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraguai, Bolívia e Peru.

Tão misterioso quanto o mítico Peabiru é o túmulo que está escondido em algum lugar da praia da Sepultura. Seu Naro volta ao barracão e pega num canto no chão um pedaço de pedra escura, porosa. A apresenta como prova da existência do tal túmulo. Lasca um pedaço para mostrar que é feita de óleo de baleia. Só ele sabe onde é o local e não conta para ninguém. Já ofereceram muito dinheiro pela informação (“daria pra ficar rico”, exagera), mas nem assim entregou o segredo. “Aí, acaba a história”, justifica.

Durante todo o tempo em que conversamos, seu Naro recebe chamadas ao celular. Atende, olha o mar, concorda, faz alguma observação e desliga. Segunda-feira, explica, capturaram 300 tainhas na Sepultura, um ou dois dias depois, mais 40. Quantidade considerada pequena. Teve um ano, 1949, que 42 mil foram arrastadas a esta praia. Barcos vinham de fora para comprar o peixe diretamente das redes. Era tainha que não acabava mais. Quase 60 anos depois, Naro mantém a vigília sobre um cardume escondido nas pedras, num ano em que a pescaria tem sido fraca por aqui. O celular toca novamente. Depois que ele atende e desliga, pergunto com quem fala tanto. É com o filho, que está em algum lugar do costão, atrás do montão de mato, atento à movimentação dos peixes. Neste momento, chega Claudir, o outro filho de Naro. Aproxima-se do pai e mostra que, para além das pedras, alguma coisa acontece:

– Olha ela, pulando lá fora!

Depois, se afasta para sentar-se numa pedra. Liga um rádio transmissor e troca impressões com o irmão, oculto em seu posto avançado. Coisas da modernidade: rádios e aparelhos celulares ajudando na tradicional pesca da tainha.

Nisso, seu Naro saiu para espantar uns turistas que acabam de chegar. São três casais. Vieram espremidos num fusca e pretendem acampar ali. O nativo explica que eles não podem ficar, o grupo argumenta, insiste, o pescador replica, a coisa ameaça descambar para a discussão, mas, no fim, ele cede e os seis partem pela trilha que leva ao matagal, na ponta da Sepultura, arcados com o peso das mochilas. Coisa de uma semana depois, Naro teria uma altercação muito maior pela frente, certamente o momento mais difícil de seus 80 anos de vida, quando um bando de violentos assaltantes invadiu sua casa. Naturalmente, não buscavam o velho tesouro do Adrião – queriam dólares.

(*) Texto escrito em 2006, para a segunda edição do livro Contam os antigos… História e lendas de Bombinhas

Romaria do Além

Ah sim, falávamos da Procissão das almas e dos textos que estão na gaveta, à espera de uma improvável segunda edição do Contam os Antigos. O texto abaixo escrevi como introdução a um capítulo que trata dessa curiosa crença que, aliás, não é exclusividade nossa, trata-se de uma herança que nos chegou de além-mar. Bem, importa que fiz na ocasião uma incursão até o cemitério de Bombinhas na hora propícia (à meia-noite), num esforço de jornalismo “gonzo” para descobrir alguma igualmente improvável manifestação do Além. Começa assim…

“Não é todo mundo que vê a procissão das almas”

Passa um minuto da meia-noite. Na Governador Celso Ramos, a última Praiana do dia reduz a marcha antes de vencer as duas lombadas na curva final da avenida, rumo a Canto Grande. Dentro desse ônibus, amarelo com listras em degradê vermelho, talvez durma algum estudante universitário cansado, voltando de Itajaí ou de Balneário Camboriú. No mais, exceto pelo motorista e pelo cobrador, é provável que esteja vazio.

Choveu durante o dia inteiro. Agora, caem apenas umas gotas retardatárias. O céu está limpo e claro, dá para distinguir nuvens rosadas na direção do Oeste. Amanhece. No asfalto molhado da SC-412, passam alguns carros, separados por intervalos de minutos. Alguém caminha solitário na altura da “Volta do Almeida”. Na subida do morro, corre uma névoa rasteira, branca em contraste com o fundo iluminado de uma placa publicitária.

Bombas está quieta neste início de madrugada. O mar, ao contrário, mostra-se agitado. Linhas brancas de espuma saem do escuro e, uma após a outra, as ondas despencam na areia. Embora quieto, o bairro não está exatamente dormindo. Alguns estabelecimentos ainda funcionam. O “Restaurante do Olímpio”, por exemplo, recebe algumas pessoas.

Noutra esquina, um grupo conversa. Um carro pára rapidamente, pergunta algo a eles, depois segue vacilante. Um ciclista surge na avenida, as lanternas dos pedais refletindo os faróis que passam. Um pouco mais na frente, um sujeito de boné caminha quase no meio da pista, olha para trás e então decide seguir pela calçada. Há mais gente, sentada nas escadarias da fachada de um edifício no final da Leopoldo Zarling. Dessa altura, já dá para ver a torre da capela, iluminada num brilho amarelado, como o produzido por lâmpadas comuns.

Ao final da “Curva do Piolho”, no início da descida que conduz ao Centro, uma obra no calçamento dividiu a pista no meio, uma parte está interditada e ficou difícil passar. Mais adiante, a mesma obra transformou meia pista numa vala lamacenta.

Bombinhas está igualmente quieta, embora seja o início de um feriadão. Ali na frente, empregados recolhem as cadeiras de um restaurante e uma moça aguarda sentada no ponto de ônibus. O vigia do empreendimento hoteleiro mais vistoso do centro, a Vila do Farol, conversa com uma mulher. Quando amanhecer, será 2 de novembro, quinta-feira, dia de Finados. Por enquanto, é a Noite de Todos os Santos.

Meia volta e lá está, vista pelo lado de Bombinhas, a capela da Imaculada. A subida que conduz até ela se perde num breu absoluto. Lá em cima, porém, o cemitério surge iluminado. De perto, a igreja se apresenta muito branca. Um potente holofote despeja sua luz sobre a estrutura. Tudo está calmo, só se ouve a cantoria solitária de um grilo e o chiado do vento, que sopra muito forte e remexe as folhas das palmeiras e dos arbustos. Embaixo, cintilam as luzes da cidade.

Nessa calmaria, o coração experimenta uma ansiedade, receio de que a coragem seja posta à prova a qualquer momento. Mas nada se movimenta neste lugar, seja vivo ou morto. Mesmo assim, é melhor não arriscar demais. Na descida, uma mulher segurando uma sombrinha enrolada cruza a rua.

Bombas está mais calada, agora que é quase uma da manhã. Se algo primitivo ou sobrenatural ainda caminha por aqui, talvez tenha se recolhido aos cantos mais escuros, nos fundos da cidade. Um olhar furtivo para a escuridão das ruas transversais não dá indicação de que essa fantasiosa suposição possa estar correta. No morro, a névoa segue seu caminho e a única fileira de luzes que se vê ao longe é da iluminação pública do município de Itapema. Nada que se pareça com uma procissão do além.

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