Categoria: Pirão D’água

Suor pelas trilhas da Costeira

“Dil, vamos correr uma de 30 devagarzinho amanhã, 6 horas da matina?”, convidou, pelo Facebook, o Coveiro. Era segunda-feira (20), um dia após a Meia Maratona de Balneário Camboriú. “Vamos na Santa Luzia e depois a trilha até o Zimbros”, detalhou o amigo, músico e viciado em corridas. As pernas ainda estavam moídas pelo esforço de domingo, mas só me ocorreu uma coisa para responder: “Simbora!”

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Selfie no morro de Santa Luzia. Ao fundo, Tijucas

Assim, antes que começasse a clarear, enquanto quase todo mundo aproveitava o feriado de Tiradentes para amaciar um pouco mais o travesseiro, fiz o primeiro pit stop no Cezinha, cúmplice nesse estranho ritual de autoimolação, e dali partimos para a casa do André. Trio reunido, dia clareando, seguimos rumo a Santa Luzia.

A primeira etapa da jornada ocorreu sem problemas. Chegamos ao pé do morro que liga aquele bairro de Porto Belo à Costeira de Zimbros e iniciamos a subida, que é íngreme, caminhando. A partir dali, seria uma tortuosa jornada subindo e descendo por trilhas que já se tornaram velhas conhecidas dos praticantes de corridas de aventura. As provas do gênero que acontecem na península passam por ali. Mas a minha relação com a Costeira vem de antes disso.

Em 1999, o finado jornal Pirão d’água realizou uma de suas mais memoráveis coberturas. Na época, havia uma polêmica em torno de uma proposta da prefeitura de Bombinhas. O executivo queria alterar o zoneamento daquela área para permitir a construção de uma “estrada panorâmica” que ligaria o município à BR 101 ― e de quebra, construções até 100 metros acima do nível do mar. Era a chamada Cota 100.

“Uma das regiões de maior beleza e importância econômica do município de Bombinhas, aproximadamente sete quilômetros de mata Atlântica, vegetação de costão e floresta quaternária, emoldurados por rochas, pequenas lagoas e praias quase intocadas”, assim descreveu o jornal aquele trecho de solo bombinense, que, sem dúvida, possui uma das mais belas coleções de praias agrestes do Estado.

Na ocasião, a pressão popular, comandada por associações de bairro e ambientais da cidade, freou a proposta. Por causa disso, quinze anos depois, pudemos reencontrar a famosa Gruta do Padre Jacó e beber da água límpida e abundante que escorre pelas pedras, numa pausa bem-vinda depois dos primeiros dez quilômetros. A luz filtrada pelas folhas iluminava a trilha em raios “bíblicos”, atenuando o cansaço de quase duas horas de esforço e sobe e desce constante, se equilibrando no terreno acidentado e escorregadio, tarefa especialmente penosa quando se tem o joelho um tanto avariado. Imaginar que uma região como aquela corria (corre) o risco de desaparecer, com a quantidade de mananciais que há e a crise hídrica que inferniza as altas temporadas, só comprova a nossa incapacidade de antecipar desafios futuros ― para dizer o mínimo.

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André e Cezinha na Praia Vermelha: “Natureza nativa”

A Costeira, nesta época do ano, é o que se pode chamar de santuário. Quase ninguém perturba a tranquilidade das praias de areia branca e água cristalina. Nessa manhã, apenas três cansados corredores tropeçavam pela orla, um ou outro pescador ocasional empoleirava-se no costão e os pássaros podiam cantar à vontade. Na praia Triste, quando estive lá por volta de 2003, vivia José Osnildo Soares. Naquela ocasião, eu o entrevistei para o jornal da faculdade: “Seu Osnildo conta que vive sem energia elétrica, geladeira ou televisão, só o acompanha um radinho a pilha. Nas noites da Costeira, percorre a propriedade apenas com uma vela ou lanterna. ‘Aqui é na base do Deus nos acuda’, diz. Os mantimentos busca em Santa Luzia, uma vez por mês. Ele caminha pela trilha e leva uma hora até chegar ao mercado mais próximo. A encomenda chega de barco. Muito do que come, entretanto, ele planta ou pesca. A rede que ele mesmo confeccionou fica imersa em frente de casa. Os pescadores da região é que a lançam ao mar, pois seu Osnildo não sabe nadar”. Na oportunidade, aos 52 anos, completava “dez anos de solidão” na Triste. Nessa terça, não encontramos ninguém na casa.

Praticamente três horas depois de iniciar a corrida ― que para o Coveiro e o Cezinha serviu de preparação para os 42 e 21 quilômetros, respectivamente, do Vila do Farol Indomit, que ocorre dia 15 de agosto, e para mim como prova de que essa coisa de cirurgia no joelho é “para os fracos” ― chegamos à comunidade de Zimbros. Precavido, André havia atulhado a mochila com suplementos e água, mas ainda parou num mercadinho para reforçar o rancho, comprando coca-cola (um repositor eficiente, explicou-lhe a nutricionista) e água.

Nessa altura do desafio, com as pernas entorpecidas, os pés doloridos e o fôlego escasso, chegamos enfim ao pé do morro de Zimbros. O sol já batia forte e foi um martírio subir. Sentia-me como um hebreu atravessando o deserto. Com suas curvas acentuadas e grande inclinação, o morro de Zimbros é um desafio e tanto para qualquer corredor, por experiente que seja. Uma vez que se alcança o cume, ainda é preciso rezar para que os cães que guardam a Reserva Morro de Zimbros e a propriedade em frente não estejam do lado de fora da cerca.

Os cães ladraram, a caravana passou. Embalados pela descida, decidimos fechar o ciclo (que “não tem fim”, como diz a música do Uniclãs gravada pelos meus parceiros de corrida) e voltar até a casa do André ― considerando que deixamos o carro do Cezinha lá, não havia muita escolha. No final, quatro horas de corrida/caminhada, quase 30 quilômetros de percurso e a satisfação de superar um grande desafio. Para quem se habitua a correr dez quilômetros, o triplo disso parece uma enormidade. Chegar ao fim da jornada e confrontar a proeza que cometeu ― e ainda melhor, tendo com quem compartilhar ― é um prêmio saboroso. O risco é sempre o mesmo: o de viciar na adrenalina.

Seria isso “oferecer o corpo em holocausto”? Vai saber…

Pirão: e aqui chegamos ao fim

O jornal Pirão d’água durou até dezembro de 2001. Chegou até a edição 103. Na época, estava sendo tirado semanalmente. Mas, para mim, ele havia terminado antes.

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Terminou às vésperas de mais uma eleição, em setembro do ano anterior. Como é típico do período, os nervos estavam a mil e os problemas só começando para a gente. Calhou que o PDT, que estava com candidato no páreo (Arno Baron), nos procurou para publicar uma pesquisa favorável no jornal. E o Luiz concordou em publicar.

Mais tarde, porém, o PMDB, do Sérgio Biehler, surge com outra pesquisa, também solicitando espaço no jornal. Os resultados de cada uma completamente disparatados entre si. Mas havia uma compensação financeira maior nesta segunda proposta e devo dizer que a gente balançou, especialmente por achar que esta segunda pesquisa condizia melhor com a realidade. O PDT era apenas a terceira força e não havia número que pudesse dizer o contrário.

Mas havia um acordo firmado com o PDT e isso foi motivo de discussão entre a gente. Por outro lado, os peemedebistas pressionavam também. O jornal sairia exatamente na sexta antes da eleição. Com a pesquisa na capa, poderia ser decisivo no resultado das urnas.

E assim, um Candôco completamente indeciso pegou o Fiesta emprestado de sua mãe e partiu para São José, na Grande Florianópolis, sexta-feira à noite, para rodar o jornal.

Assim que pôs os pés na gráfica, já estavam lá o Valmor Moraes, vice da chapa trabalhista, e o Piti, advogando (pasmem!) pelo PMDB. E tome discussão, bate-boca, um querendo parar as máquinas, o outro que o jornal fosse imediatamente para as rotativas.

À beira de um colapso nervoso, o Luiz saiu da gráfica e caminhou pela ruazinha lateral sem saída onde ficava a Riosul até um barzinho que havia no final dela. Sentou junto ao balcão para tomar alguma coisa, com o Piti na sua orelha e sem saber o que fazer.

Lá fora, um orelhão que havia no lado do bar começa a tocar. Toca até que algum curioso resolve ir lá atender. O cara escuta e grita para dentro do bar:

– Tem algum Luiz Dadam aí?

O Candôco arregala os olhos e, sentindo-se dentro de um daqueles filmes de suspense, vai até lá atender. Era a esposa do Sérgio Biehler, Josiane, que resolveu aplicar um pouco mais de fervura na cabeça do pobre do Luiz. Perplexo – e já por essas alturas, furioso – o Candôco retornou até o balcão do bar, onde o Piti, em tom de quem sabe dessas coisas – e provavelmente sem gaguejar – lhe bate nas costas e diz:

– Bem-vindo à política, meu amigo…

Anarquia no Tiradentes

Tem um filme de 1979 que virou “cult” chamado Rock’n’roll High School, no qual os Ramones aparecem tanto compondo a trilha sonora quanto atuando, como eles mesmo, no filme, que ao final mostra os alunos detonando, literalmente, a Vince Lombardi High School. Rebeldia absoluta.

Episódio de rebeldia ocorreu certa vez no Tiradentes. Curioso que foi num momento em que os alunos, pais e professores experimentaram um raro momento de exercício democrático. Foi quando escolhemos, pelo voto, o nosso diretor. E o nome que escolhemos foi o do professor Osvaldo Eduardo di Pietro, o Vadão.

Porém, as coisas não caminharam bem para ele na nova função. Logo, estávamos suspeitando de que havia algum conluio secreto para atrapalhar a vida do Vadão. Alguns de nós, então, resolvemos protestar. E o recurso que usamos foi a anarquia.

Não demorou para haver bombinhas estourando nas lixeiras do colégio. Numa tentativa mais grave de terrorismo, tentamos mandar pelos ares a privada do banheiro dos meninos.

Osvaldo Di Pietro, o Vadão: o terrorismo, como era de se esperar, não ajudou em nada (foto: Isadora Manerich)

O Vadão, obviamente, não ficou contente com essa bizarra manifestação de apoio. Tampouco isso ajudou na sua causa, antes pelo contrário. Fato foi que, ao final, o Vadão deixou precocemente o cargo.

Lamentamos porque o Vadão a gente conhecia, e respeitava, desde a época em que ele tinha barba. Sim, a barba era uma marca registrada, assim como o bigodão que ele ostenta até hoje. Lembro-me do susto quando o vimos pela primeira vez sem ela – parece que sacrificou a barba por uma aposta perdida.

O Vadão também estava lá num período mágico na infância da minha turma, quando reuniu todo mundo num time de futebol. Nos finais de tarde, a rapaziada se juntava no Tiradentes para aprender a jogar bola (não aprendi, infelizmente). A jornada rendeu uma inesquecível partida lá no Matadouro, em Itajaí, quando promovemos um gato: naquele jogo, o Ednei virou o Isaías.

[Bem depois disso o Vadão foi treinador do Cervejas, mas nem ele podia fazer aquele time, que tem compulsão por perder, ganhar um título… Também não o mandamos embora, foram as circunstâncias que afastaram a ambos.]

Mais tarde, quando decidimos fundar o Pirão d’água, recorremos ao Vadão para nos ajudar, pois ele era jornalista formado e podia ser responsável pelos desatinos que cometíamos nos primeiros meses do jornal. E ele, generosamente, aceitou. Mas aí havia eleições à frente, o Vadão estava no páreo, e tivemos que declinar da preciosa ajuda. Mas ele não deixou de colaborar com o jornal, assumindo a “editoria” de esportes durante quase todo o tempo em que o jornal existiu.

Depois o Vadão seguiu procurando colaborar com a causa pública, como vereador e também como secretário de Esportes. Deve ter visto quanto uma coisa e outra podem ser espinhosas. Largou disso, como também largou das aulas. Hoje, vive de alugar imóveis e de fazer a crônica da memória esportiva de Porto Belo. Sem abrir mão do seu papel de cidadão.

Alcides Mafra

Hora do rush

Faz um tempo, antes ainda do verão, esperando por uma carona para Balneário numa segunda-feira pela manhã, me dei conta de algo que os mais observadores devem ter reparado muito antes: como anda confuso o trânsito em Porto Belo! Caótico talvez seja o termo mais correto…

O que antes era exclusividade dos meses de verão parece estar incorporado à nossa rotina, ou seja, trânsito lento no centro, especialmente nas chamadas horas de rush. Na manhã em que tive a minha “revelação”, fiquei surpreso com a quantidade de veículos transitando pela Irineu José Moreira logo pela manhã: ônibus de estudantes, caminhões e mais carros de passeio, numa confusão de ir e vir, estacionar, manobrar para dar passagem ao outro etc.

Alcides Mafra

A razão principal para isso, creio, está na atual facilidade para se adquirir um carro ou moto. Basta lembrar que, há uma década e pouco, eram raros os meus amigos que possuíam veículos. Hoje, difícil é ver uma família que não tenha pelo menos um na garagem. Motocicleta, então, quase todo rapaz ou moça hoje em dia dirige uma.

Trânsito complicado é quase sempre problema para quem, justamente, não dirige. O pedestre precisa estar atento e seria muito bom que, de parte a parte, passantes e motoristas, usassem com mais frequência e observassem as faixas de pedestre.

Por outro lado, existe a dificuldade com os passeios. Raras são as calçadas que possuem rampa, circunstância que agora, pilotando um carrinho de bebê, verifico com mais precisão, muitas são esburacadas e muitas mais simplesmente, inexistem. E há o problema da superpopulação de postes na avenida: como comparou muito bem dona Lúcia Japp, a principal via parece um “paliteiro”.

Ocorre que, com a cada vez mais comum presença dos navios de cruzeiro em nossa orla, a população pedestre na cidade aumenta bastante em determinados dias. Contingente que, em boa maioria, é formado por idosos.

Se por um lado há mais carros na pista, por outro há mais gente circulando nas calçadas. E estas, definitivamente, não comportam nem atendem adequadamente ao público. Creio que está aí um ótimo tema para os postulantes ao próximo mandato municipal terem na agenda.

Arão Mafra Filho

A Paixão sem farra

Amanhã será a Sexta-feira da Paixão e permanece a calmaria das últimas semanas. Para quem, nos últimos anos, acompanhou o auge e a agonia da farra do boi, quando esta virou caso de polícia, parece que temos, como diria Nelson Rodrigues, “um silêncio de mil catedrais”. Claro, tudo pode acontecer de hoje até domingo.

No entanto, parece realmente que a farra está sepultada. Houve casos isolados, repreendidos com brutalidade até. As próximas gerações, muito provavelmente, saberão dessa tradição só de ouvir falar.

Acho que já comentei por aqui, mas lembro com saudade do tempo em que, ainda garotos, acompanhávamos a farra por trás das janelas gradeadas lá da casa da minha mãe. Empoleirados no sofá, eu e os irmãos lutávamos contra o sono, espiando a rua vazia e escura, ouvindo o rumor da conversa dos adultos na esquina e os ecos distantes distantes do pessoal que “brincava” com o boi.

Se tivéssemos sorte, o animal passaria correndo feito uma assombração defronte nossos estarrecidos olhos. Talvez víssemos mesmo o espetáculo do boi lançando adiante algum farrista mais ousado.

Mais tarde, já maiores, junto com os outros garotos, pudemos “correr atrás do boi”. Devidamente paramentados (bermuda velha por cima de uma calça de moletom, outro moletom amarrado atravessado no peito e kichutes), ficávamos pendurados nas árvores, esperando o grande momento da “soltada”, lá onde hoje está o mercado do Romilton. Foi quando surgiram as primeiras lendas, com a do Jackson que, dizem, subiu num espinhento pé de “mamica-de-porca para escapar do boi. A árvore, testemunha silenciosa da veracidade ou não do “causo”, não existe mais  – seu Zé Antônio a derrubou.

Arão Mafra Filho

Depois vieram os mangueirões, as carreiras pela cidade, as semanas inteiras de soltadas que paravam as aulas no Tiradentes, caminhões boiadeiros em comboio pela cidade. Mais tarde, com a proibição, tudo foi se acabando.

Abandonei cedo a farra, primeiro por covardia, depois por desgostar da tradição. Não há como negar, é uma prática violenta. Depois de adulto, ainda participei de algumas, pois toda a turma queria ir, não havia jeito. O encanto, porém, já havia passado.

Nos tempos de Pirão, cobrimos algumas vezes a farra do boi. A proibição era assunto recente e a revolta dos farristas contra a imprensa, em especial, era enorme. O Candôco corria um especial perigo, pois, como fotógrafo, era a parte mais visível do “inimigo”. Uma foto memorável daquele tempo (preciso achá-la nos arquivos do jornal) foi tirada em Canto Grande. Um caminhão passava na avenida com um bando de farristas em cima. O boi não se via.

O Candôco subiu num muro e conseguiu fotografar o animal deitado amarrado no fundo da carroceria, congelando na imagem também as expressões de raiva e ameaça dos farristas. O jeito foi sair de lá rapidinho.

No Pirão, creio que exercíamos uma espécie de autocensura com relação à farra. Lembro de um editorial que escrevemos, no qual defendíamos a tradição, mas dávamos razão à proibição  – ambiguidade maior, impossível. Ou seja, saíamos pela tangente, embora nem, eu nem o Luiz fôssemos a favor da “brincadeira”. No fundo, é algo parecido com o que ocorreu até há bem pouco, quando políticos locais defendiam e até incentivavam a prática, pois não queriam ficar mal com seus eleitores.

A primeira cruzada

Erro grosseiro na capa roubou o gostinho da vitória

Após uma segunda edição bastante protocolar, cuja matéria de maior interesse estava no pé da página 7 (a primeira pesquisa eleitoral do jornal, realizada no bairro Araçá, tema que ainda daria muita dor de cabeça), em agosto de 1996 sairia, na edição de número 3, a primeira grande reportagem do Pirão d´água. Sua primeira cruzada, digamos assim.

A pauta estava bem ali na nossa frente, na baía de Porto Belo. Mas não lembro como chegou à nossa redação. O fato é que os barcos que faziam a pesca de atum viviam cercando isca viva nas proximidades da ilha João da Cunha, algo que contrariava a legislação ambiental. Os pescadores artesanais estavam furiosos, mas impotentes.

Resolvemos averiguar e, como se diz pomposamente por aí, “num esforço de reportagem” levantamos informações. Fomos ao Araçá tentar conseguir uma boa imagem dos atuneiros em ação. Lá, encontramos Teté, candidato a prefeito, que resolveu fazer uma média e ligar para o Ibama, denunciando o caso. Ninguém atendeu a sua chamada.

Mas conseguimos algumas imagens. Sem uma lente com zoom suficientemente amplo, as fotos não saíram lá aquelas coisas, e ficaram piores ainda na impressão do jornal (olhando agora, parecem essas fotos que se vê de supostos ovnis).

Ouvimos pescadores, políticos locais, entrevistamos o presidente da Colônia de Pescadores (que ingenuamente considerei uma espécie de Chico Mendes portobelense), obtivemos alguns números. “Nos últimos anos em Porto Belo nós temos assistido em silêncio à perpetuação de uma verdadeira afronta”, esbravejamos no editorial. Uma verdadeira bomba.

Faltou praticar melhor o jornalismo e ouvir o outro lado. Sequer suspeitávamos que muitos pais de família da região trabalhavam nos convés daqueles navios, ou que houvesse outros aspectos a considerar.

Foi também a primeira vez que passamos uma noite inteira trabalhando no jornal. Suamos para deixar tudo pronto, revisado, impecável. Às 7 da manhã do dia seguinte, seguíamos para casa como um bando de zumbis, esfalfados (acho que o Candôco ainda teria que levar o jornal até a gráfica que o rodaria, em Florianópolis).

Porém, nos sentíamos realizados. Estávamos cumprindo com nosso papel, abraçando uma causa importante, praticando jornalismo de verdade. Éramos os paladinos da justiça da vez. Só que, assim que chegaram os fardos de jornal, na primeira olhada, o Candôco deitou o olho sobre um erro grotesco no título da legenda, algo que, embora tívessemos visto e revisto à exaustão, acabou passando batido. Apenas isso bastou liquidar nosso sentimento de vitória…

Candôco na mira da Lei

Nesses tempos todos de Pirão, não há dúvidas de que foi o Luiz o cara que mais viveu situações que eu poderia chamar de surreais. Responsável pelo departamento comercial do jornal, o Cândoco também fazia as fotos, servia de motorista e ainda dava uma mão na finalização de cada edição. Trabalho à beça.

Uma ocasião, um pouco antes do meio-dia, se não me engano, recebemos um chamado da delegacia. Havia um boi solto no Araçá (era época de farra do boi) e a polícia iria lá para capturar o animal.

O delegado, então, era Edsonir Soares, um sujeito polêmico, muita gente na cidade torcia o nariz para ele, pois atuava politicamente, mas gostava de fazer grandes operações policiais e tinha simpatia pelo jornal. Sempre que estava fazendo algo vultoso, chamava a gente.

Embarcamos no nosso fusca e fomos até o Araçá. Ao chegarmos quase no Estaleiro, lá estava o animal, na descida da rua, as orelhas abanando nervosas, olhando desconfiado para o policial militar que esperava, já com a arma na mão.

O boi havia sido financiado pelo vereador do bairro, o Alex Monteiro, daí o interesse do delegado em fazer cumprir a lei – eram opositores. A intenção era abater o bicho, mas Alex negociou a remoção dele e esperavam um caminhão para fazer isso. O problema era que o animal estava agitado e ameaçava sair correndo a qualquer momento…

O PM parecia também nervoso e apontava seu revólver em direção à cabeça do animal. Edsonir puxou a escopeta. Com a câmera na mão, o Candôco atravessou a rua e subiu no barranco do lado oposto, atento a qualquer lance.

Nisso, o animal ensaiou um passo, se mexeu um pouco mais… e começou a andar. Quase à queima-roupa, o PM atirou na cabeça do bicho e ele disparou! Passou por mim e ia passando pelo delegado, que engatilhou a escopeta e derrubaria o boi ali mesmo. No entanto, do outro lado, na linha de tiro, lá estava o Candôco, com a câmera na frente do rosto. Quando viu o Cândoco na mira, Edsonir baixou a arma e disparou por baixo do animal, que sumiu em disparada. A bala acertou o barranco, um pouco abaixo de onde o Cândoco estava, que desapareceu no meio da fumaceira.

Candôco viveu as situações mais inusitadas na pele do fotojornalista do Pirão

Na minha lembrança, a ação aparece como num desenho animado. Parecia que o Candôco ia escorregando como gelatina pelo barranco, tamanho o susto. E perdeu a compostura: “Tás doido! Qués me matar!”, gritou para o delegado, completamente transtornado. Ainda hoje, lá pelos arquivos que o Luiz mantém do jornal, tem a foto, toda tremida, do momento em que o boi passa e o policial atira contra o Candôco.

O Edsonir, ainda hoje, sempre que encontra o Candôco, dá muitas risadas com o episódio, diz para quem quiser ouvir “eu quase matei esse cara!” e conta a história. Desconfio que em nenhum momento ele perdeu o controle da ação. Atirou mesmo foi para matar de susto o Candôco. E conseguiu.

Como fazer um jornal chapa-branca – II parte

O amigo Aristides lembrou, nos comentários, de um adjetivo muito usado nos círculos “administrativos” naqueles tempos do Pirão, não sei se popular ainda hoje: cola-branca. Também não sei se exclusivo daqui ou se usado em outros lugares – imagino que sim.

Cola-branca servia para designar o sujeito que não gozava de muito prestígio entre os mandatários do município. Por exemplo, se alguém fosse até a prefeitura para reivindicar algo, porém não fosse do partido assentado no poder, assim que saísse de lá teria seu pedido desconsiderado da seguinte maneira: “Esse é cola-branca!”. Ou seja, poderia esperar sentado pela solução.

Assim, cola-branca era o cidadão da oposição, o “do contra”. Como, durante sucessivas administrações, Porto Belo esteve sob comando do mesmo grupo político, filiado a siglas como PDS e PFL (hoje PP e DEM, respectivamente), a oposição, representada pelo PMDB, incorporou por muito tempo o papel de cola-branca.

Quando o PMDB finalmente assumiu o poder, em 1993, passou a pecha aos adversários.

Mais adiante, criamos no Pirão, em nossa seção de charges, uma tirinha cujo personagem era o Cola-branca. Tentamos brincar com o absurdo e a conveniência que era para os administradores se livrar de questões importantes apenas atribuindo o rótulo de cola-branca a quem exigisse seus direitos. Mas não creio que tenhamos conseguido transmitir a mensagem que desejávamos.

A questão é que, assim que saiu a primeira edição do jornal, em plena corrida eleitoral, estávamos sofrendo certa crise de identidade perante a classe política local. Para a desconfiada oposição, capitaneada pelo PTB e PPB, éramos sem dúvida um jornal chapa-branca. Já a situação não digeriu muito bem o fato de termos destacado na capa o vice-candidato dos opositores (não tínhamos uma foto do vice do PMDB. Por outro lado, sobrava espaço e não sabíamos como fechar a capa), nem o fato de termos coberto o lançamento da campanha e observado o evidente clima de racha que havia, fruto de uma convenção um tanto traumática para o partido, constatação que dividimos com os leitores.

Para a situação, estava claro: éramos colas-brancas.

Como fazer um jornal chapa-branca – I parte

Li em algum lugar que Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler – de sinistra memória – dizia algo parecido com isto: “Uma mentira dita mil vezes se torna uma verdade”.

Não sei se acusaram a gente de ser “um jornal do PMDB” mil vezes, mas falaram o suficiente para que tivesse quem acreditasse e a gente precisasse trabalhar muito a cada edição para desfazer a falsa impressão. Claro que, em algumas ocasiões, contribuímos para que a “maldição” persistisse…

Acho que quem teve a ideia de fundar o jornal foi o André. Pelo menos, foi de sua boca que eu ouvi pela primeira vez sobre isso. Conheci o André depois que saí do Maré Mansa, um informativo bancado pelo então prefeito de Porto Belo, Sérgio Biehler. Saímos eu e o Roberto de Souza, o Piva, do Maré Mansa (saíram conosco, na verdade) e aceitamos o convite para trabalhar com o principal inimigo político do nosso antigo patrão, no caso, o Etevaldo Santana, um jornalista que tinha dois jornais, um em Bombinhas e outro em Porto Belo, e aprontava horrores – contra seu desafeto e contra a língua portuguesa também.

Lá no Maré Mansa surgiu, praticamente, um time de futebol que deu o que falar, depois batizado de Cervejas. Mas essa é outra conversa…

O André trabalhava com o Etevaldo, no escritório do piso superior da rodoviária de Porto Belo, e também fazia frila para O Atlântico, então comandado por um sujeito chamado João de Deus. Mais tarde, eu e o André decidimos trabalhar em sociedade, diagramando jornais da região. E, mais tarde ainda, incluímos o Luiz Dadam (Candôco) nessa sociedade, abrindo juntos uma empresa para dar aulas de informática. O plano parecia excelente, não houvesse aparecido uma concorrente melhor habilitada que pôs tudo a perder…

André morava em Itajaí, mas vivia mais tempo em Porto Belo, visto que tinha noivado aqui e tinha seus frilas na cidade. Guitarrista de uma banda de Itapema, depois ele teve outra ideia interessante: a de montarmos uma banda de rock. Disso nasceu a Nosferatu, mas isso também é papo para outra oportunidade…

Devia ser abril ou maio de 1996, ano de eleições municipais. André achou a ocasião perfeita. Nenhum de nós era jornalista, mas tínhamos trabalhado com jornais desde Navegantes até Governador Celso Ramos, o suficiente para acreditar saber como fazer. Mais importante: achávamos poder fazer melhor. Na verdade, queríamos entrar com tudo na campanha, promovendo entrevistas, fazendo pesquisas de opinião, enquetes com temas importantes, que pudessem nortear a corrida eleitoral. No papel, tudo certo…

Ideia aceita, havia duas decisões importantes a tomar. A primeira delas, lógico, era dar nome ao jornal. Promovemos um “brainstorm”, André, eu e o Luiz. Sentados em volta da escrivaninha do escritório que havia sido do Etevaldo, lá no piso superior da rodoviária, tratamos de lançar nomes. Mil “gazetas” disso, “folhas” daquilo e mais um monte de bobagens que usávamos para aliviar a seriedade da coisa – escolher nome de jornal não é muito fácil…

Um dos nomes que foi dito de brincadeira foi “Pirão d’água”. Quem disse? Não sei, talvez o Candôco saiba, mas desconfio que tenha sido o André. Mesmo que fosse para ser piada, o nome começou a fazer sentido quando o associamos a essa coisa de valorização da tradição local, algo que queríamos incluir na linha editorial. Parecia, portanto, senão uma boa escolha, ao menos a melhor que tínhamos no momento.

A segunda providência era conseguir um jornalista responsável. Ou seja, alguém com diploma, amigo nosso e que topasse fazer isso na camaradagem. O único com esse perfil que conhecíamos era o Vadão. Problema: ele era então secretário de Esportes da prefeitura de Porto Belo, portanto vinculado à campanha eleitoral. Ainda assim, parecia a melhor (senão, a única) opção, pois era alguém conhecido e confiável, então valia a pena tentar. Vadão topou na hora, não impôs nenhuma condição e ainda aceitou ajudar escrevendo sobre esportes, assunto que ele realmente domina e aprecia. Assim, era pôr mãos à obra e lançar na rua a novidade.

Nem imaginávamos a encrenca em que estávamos nos metendo…

Pirão d’água, o retorno

Faz uns anos, um colaborador dos tempos de Pirão d’água, o Cacau, apareceu com a ideia de fazermos circular uma edição especial desse jornal, em homenagem ao semanário que deixou de circular lá se vão dez anos. Na ocasião, Candôco e eu nos empolgamos com a possibilidade, mas o plano não saiu da prancheta – fazer jornal impresso dá trabalho e custa algum dinheiro.

Mais recentemente, amigos tinham me sugerido lançar algo nessas redes sociais, Facebook e tal, mas isso é coisa que nunca me atraiu. Por outro lado, lá na revista onde trabalho, um colega sugeriu a criação de um blogue. Pensei a respeito… Com um só livro lançado, material para a continuação deste esfriando (congelando, na verdade) na gaveta, planos para um outro título no mais completo limbo, mais uns textos antigos, sobre coisas e pessoas de Porto Belo, do meu período acadêmico que gostaria de rever, tudo isso me pareceu sugerir que largasse um pouco de preguiça e começasse a lançar na web um pouco dessa produção. Com a prática – vai saber? – poderia engrenar e tirar da fila os projetos empoeirados.

E novamente o Pirão d’água. Se não me falha a memória, foram cinco anos de uma experiência jornalística, no mínimo, interessante. Com uma dose tremenda de boa vontade e as melhores
intenções (ainda que, de boas intenções o inferno esteja cheio), muito de ingenuidade e desconhecimento de causa, conseguimos fazer do Pirão algo relevante dentro do que se pode chamar “imprensa local” (o que, talvez, não seja grande coisa – vide Gazetas de Bombinhas, Planetários e exemplares do gênero). Na pior das hipóteses, produzimos um registro do cotidiano da
península durante o período em que o jornal circulou, anotamos nas páginas que já amarelaram um pouco da sua história.

É do conhecimento dos jornalistas que o jornal de ontem serve só para embrulhar o peixe de hoje, quando muito. Resolvi, pretensiosamente, contrariar a máxima, e trazer algumas das histórias
do Pirão d’água, coisas que talvez algumas pessoas ainda curtam lembrar, especialmente nossos parceiros de empreitada. E trazer a reboque outros textos, coisas que estavam no baú, jogar conversa fora, publicar uns rabiscos, umas fotos, fazer uns ensaios – enfim, para isso que servem
blogues. Vejamos até onde isso vai dar…

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