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Hercólubus em Porto Belo

De tempos em tempos, um aviso aparece em “lambe-lambes” colados nos postes da Governador Celso Ramos, anunciando: o fim está próximo. Sim, senhores, Hercólubus, o temível planeta vermelho (ops!), está novamente a caminho da Terra, e sua visita promete convulsionar nosso pobre planetinha azul. As epidemias e perturbações climáticas que estamos vendo são apenas um aperitivo. O pior ainda está por vir.

Pelo menos, era nisso que acreditava o místico colombiano Joaquin Enrique Amortegui Valbuena (1926-2000) – ou, para os chegados às suas teorias, V. M. Rabulú. Em 1998, ele escreveu Hercólubus ou Planeta Vermelho, livro ao qual fazem referência os cartazes que apareceram no início de março na avenida principal da cidade.

Segundo a Alcione, uma associação criada na Espanha em 2007 para divulgar a obra de Rabulú e que distribui o livro gratuitamente para todo o planeta, Hercólubus “é resultado das investigações de seu autor nas dimensões superiores da natureza”. O que vem a ser isso? Bem, aqui temos uma explicação do autor: “Sustento o que escrevo neste livro porque conheço, estou seguro do que digo porque tenho investigado a fundo com meu corpo astral, que é o que me permite dar-me conta de tudo, minuciosamente”.

Minha curiosidade surgiu pela frequência com que encontro os cartazes do livro colados pela cidade. Algum abnegado seguidor do guru colombiano, sem dúvida. Entrei em contato com a Alcione para tentar descobrir quem seria o agente dessa campanha.

A entidade, porém, desconhecia a ação: “Nós, da Associação Alcione, não colamos cartazes em postes por ser proibido na maioria dos municípios brasileiros. Sabemos que há simpatizantes do livro que fizeram cartazes com nossos sites e página do Facebook (sem nenhuma autorização nossa) e que têm colado em alguns municípios brasileiros. Infelizmente, nós não temos nenhum colaborador que mora na região de Porto Belo”, informou a associação via Facebook.

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Hercólubus: a verdade está lá fora

Por coincidência, nesta mesma semana em que buscava saber mais sobre os “avistamentos” do Hercólubus em Porto Belo, encontrei no Facebook um link para uma matéria do tabloide britânico The Sun, de 6/04, na qual o astrofísico Daniel Whitmire, da Universidade da Louisiana (EUA), afirma que o Planeta X, que foi responsável pela extinção dos dinossauros, pode repetir sua desastrosa performance… neste mês!

Para Whitmire, o Planeta X é o Planeta Nove descoberto no mês de janeiro e que tomou a vaga que antes era de Plutão, atualmente na segunda divisão planetária. Na verdade, ninguém viu o novo planeta ainda, mas pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia afirmam ter encontrado “evidências sólidas” de que ele existe. Pelos cálculos dos pesquisadores Konstantin Batygin e Mike Brown, ele tem dez vezes o tamanho da Terra e orbita o Sol a uma distância vinte vezes superior à de Netuno, que é o planeta mais distante do Sistema Solar. Aparentemente, devido a sua órbita incomum, demoraria em torno de 15 mil anos para dar uma volta no nosso astro-rei.

Seria o Nove Hercólubus? Claro que muita gente relacionou a descoberta ao misterioso planeta vermelho, ou então a Nibiru, astro mencionado em antigos mitos sumérios (e que deveria ter decretado o fim do mundo em 2012), entre outras teorias que os cientistas desdenham como coisa de maluco. Mas, pelo sim, pelo não, acho que vou encomendar meu exemplar do livro… Se der tempo.

Corrida de adeus à Costeira

“Aí, Dil… Cadê o número?”, perguntou o Fabrício, fotógrafo que cobria a subida do Morro de Zimbros para o Foco Radical, site que faz fotos dos corredores nas provas da região.

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O amigo Marcos passeia numa ainda intacta Costeira com a filha Laura: privilégio que o progresso pode levar

Não havia número. Em que pese a excelente organização da sétima edição do Indomit Vila do Farol (15/08), uma já tradicional maratona realizada nas picadas de Bombinhas, meu orçamento não contemplava os quase 300 reais da inscrição. Fui, como os praticantes dessa “modalidade” chamam, “de pipoca”.

Resolvi correr à revelia dos organizadores, primeiro, para acompanhar o Cezinha, parceiro em quase todas as provas que tenho feito. Contratado para tocar na prévia da competição, o Cezinha se inscreveu para o revezamento, rachando os 42 quilômetros com outro músico, o Guto.

O percurso, com alguma variação, já tínhamos feito antes. Mas nunca para valer. Daí que resolvi ir de penetra. Como penso que a discrição é uma prerrogativa de quem fura a festa alheia, procurei me manter na moita, coisa até simples de fazer no meio de uma massa de mil corredores. E não houve qualquer embaraço na primeira meia dúzia de quilômetros, até que, saindo da praia do Centro e passando pela de Bombas, subimos a Martim Pescador em direção ao Zimbros. Foi lá, no morro, que o Fabrício me desmascarou.

Com uma série de impropérios na ponta da língua – devidamente contidos – passei pelo fotógrafo no topo do morro, perto das antenas, com o Cezinha subindo logo atrás, e mais um montão de corredores oficiais mais abaixo. Dali em diante, boa parte da prova seria feita no meio do mato, em direção à Costeira. Ela, o segundo motivo pelo qual participei do desafio.

Momentos antes da largada, um grupo de moradores realizava um ato pela preservação da Costeira. Distribuíam fitas verdes para os corredores, que de bom grado aderiram ao movimento. Ao longo da trilha e na chegada à praia da Lagoa, topamos com mais alguns abnegados, que faziam barulho e exibiam faixas. Torço por eles, mas temo pela causa.

Faz pouco mais de dois meses e meio, a prefeitura de Bombinhas divulgou um projeto de captação de água na Costeira. Recurso escasso no município, especialmente no verão, tem de sobra naquela região. Daí a ideia de puxar um pouco da água dos mananciais que descem as cachoeiras em vários pontos dos seus sete quilômetros de extensão. Para fazer isso, porém, é preciso abrir uma estrada onde hoje há uma trilha – a mesma usada pelos corredores do Indomit.

A proposta não foi bem aceita por moradores tradicionais do bairro de Zimbros. Sua preocupação é justificada, pois não é de hoje que ideias progressistas rondam a Costeira. Já se pensou em resolver a questão do segundo acesso do município construindo uma estrada por ali. O plano foi barrado pela população, temente que a obra servisse aos interesses da especulação imobiliária e toda a região fosse seriamente impactada. Pelo mesmo motivo, fazem barulho agora: a estrada pode esconder nova investida de quem vê questões ambientais como empecilho ao “progresso”. Logo em Bombinhas, que se autoproclama capital do ecoturismo e cobra dos visitantes uma taxa de preservação ambiental…

Ao que parece, o plano da barragem foi adiado. Não duvido, porém, que volte a ser colocado em pauta, nem que, cedo ou tarde, o maquinário da Casan atravesse as trilhas da Costeira. Pessimismo? Espero ser desmentido pelos fatos, mas nesses tempos de descaso absoluto com o meio ambiente, em que vemos a Amazônia encolher a níveis alarmantes pela ação de madeireiros e pecuaristas, usinas sendo construídas a um custo altíssimo para as comunidades tradicionais e indígenas, e tudo o que parece importar são obras milionárias e ocupação de áreas que deveríamos proteger, não vejo como santuários feito a Costeira resistam por muito tempo.

Por isso, corri para me despedir da Costeira. Fiz os 21 quilômetros, descendo pelas trilhas sulcadas numa pressa imposta pelos que desciam sem freios logo atrás, mal podendo apreciar a paisagem, afundando os pés nas praias agrestes mais belas do município, e cheguei, tentando acompanhar o Cezinha e sob um sol impiedoso, no final da praia de Canto Grande. Valeu a pena. Independente do que venha a ocorrer, parece-me correto acreditar que essa Costeira não será a mesma que a minha filha virá a conhecer. Que fique, ao menos, intacta na memória.

Seu Naro

Seu Naro observa as pessoas que andam de um lado para outro na praia da Sepultura e não gosta muito. “O peixe é como a gente”, ele diz, “aonde um vai, todos os outros querem ir”. Ou seja, se alguma tainha se sentir ameaçada pela presença de um turista na beira d’água, pode sumir e levar o cardume inteiro com ela.

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Seu Naro: “Aonde um peixe vai, os outros vão atrás”

Para se chegar a esta praia, é preciso seguir a avenida que atravessa Bombinhas até o seu final. Nesse ponto, descendo, chega-se ao Retiro dos Padres, nome mais comum da praia dos Ingleses. Antes, um descampado no lado esquerdo da estrada – com uma porteira obstruindo um caminho que se perde no mato – indica a entrada da Sepultura. Do lado da porteira, há espaço suficiente para uma motocicleta passar. A estradinha escorrega pelo morro, fazendo voltas. Um vira-lata deitado adiante, próximo de uma casa onde dois pedreiros trabalham, dá a sensação de se estar invadindo terreno particular.

Uns metros pelo caminho ladeado de mato e aparece um espaço gramado, no fim do qual há uma garagem aberta, de alvenaria, com espaço para três ou quatro carros. Atrás dela eleva-se um monte coberto de vegetação. Este molhe natural tem, à esquerda, uma fina faixa de praia, três barracões de pesca, uma ou duas casas. À direita, um costão pedregoso e o mar aberto.

De costas para quem chega, diante da garagem, seu Naro conversa com alguém pelo aparelho celular. Concorda, resmunga algo, desliga. Os barracões ali embaixo pertencem a ele, herança familiar, assim como este ponto de pesca. São três construções de madeira, seis metros de largura por doze de comprimento cada um. Entre o primeiro e o segundo, há umas fileiras de traves baixíssimas de varas de bambu, parecidas com obstáculos de corrida, só que rentes ao chão. Eram usadas para se esticar a rede ao abrigo da umidade, hoje servem apenas “para contar história”, como explica o proprietário.

Acomodados na descida do monte, os barracões parecem incrivelmente baixos, mas um homem de boa estatura caminha sem problemas debaixo desses telhados antigos. No do meio, uma porta lateral de correr, que mais parece uma janela, dá acesso ao interior. Seu Naro a empurra, passa para o lado de dentro e convida a entrar. O local está repleto de tralhas: velhas canoas, redes e outros apetrechos de pesca sem uso, tudo empoeirado. Nos fundos, dois gatos aproveitam uma tábua solta para invadir o recinto – devem usá-lo como abrigo. Rafi, um vira-latas pequeno, de focinho grisalho e pêlo avermelhado, companheiro do velho pescador, não dá bola aos intrusos.

Adiante, meio para fora na porta da frente escancarada, está a “Aventureira”, impetuosamente pronta para ir ao mar. É comum esta velha embarcação de 7,5 metros assumir a dianteira nas pescarias. Feita de canela-garuva, está equipada com redes para o cerco próximo da praia. Seu pai a adquiriu em 1930, mas Naro sustenta que ela possua entre 200 e 250 anos.

Uma vez, em Navegantes, Aventureira sumiu por quatro anos, depois apareceu novamente. Além desta, há nos abrigos outras cinco canoas, feitas de madeiras diversas: figueira, cedro, guarapuvú. Uma aposentada no fundo do barracão está amarelada pelo acúmulo de pó. Em seus dias de glória, conduziu o dono em viagens até Blumenau, Luiz Alves e outros municípios daquela região. Seu Naro e a tripulação saíam às seis da manhã, navegavam até às 10 da noite. Demoravam até quinze dias para voltar, período em que se vendia peixe e se comprava mantimentos para as vendas de Bombinhas. Uma vez, ele trouxe cachaça, mas se “incomodou” com um tripulante interessado em degustar a carga. Aí, não trouxe mais.

CAVERNA DO CABO

Desse tempo, ficou a canoa para testemunhar. E não só ela. Naro é um colecionador de relíquias, seu barracão um verdadeiro museu. Um remo aqui, umas boias de madeira amontoadas num canto, um rolete ali atrás, essas coisas revelam um pouco do passado de Bombinhas. E se tem algo que fascine este senhor, é contar histórias de sua terra. Embriagado com essa perspectiva, sai do barracão e procura no meio do mato o velho muro feito pelos escravos, motivo da mortal desavença que deu nome à praia. Encontra-o e caminha pelo morro acompanhando a construção de pedras até o seu final. Com Rafi seguindo na frente, sobe o elevado de terra, chega ao espaço gramado e indica, no outro lado, no meio do costão, um lugar misterioso, a Caverna do Cabo. Desce até lá, pulando de uma pedra a outra. Um escorregão inadvertido, um tombo, mas Naro já está de pé, sobe algumas rochas altas, chega a uma gruta formada pelas rochas.

Aqui, relatou sua avó, escondeu-se um soldado do Exército. Isso faz muito tempo. Vivia maltrapilho, alimentando-se de mariscos e peixes. Segundo contou no povoado, desertara durante a batalha decisiva da Guerra do Paraguai, em Cerro Corá, ao norte daquele país, travada entre fevereiro e março de 1870. Nela morreu o ditador paraguaio Solano López.

O “cabo” relatou que, na fuga, escondido próximo de uma fazenda, bebeu água misturada com sangue. Ele teria chegado à península vindo da região de Joinville, seguindo sempre pelas matas. Naro acredita que ele tenha achado o antigo “caminho dos índios”: Peabiru.

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Seu Naro, em seu rancho de pesca na Praia da Sepultura (fotos: Márcia Cristina Ferreira)

A jornalista paranaense Rosana Bond escreveu um livro a respeito dessa espécie de Caminho de Santiago tupiniquim. Em A Saga de Aleixo Garcia (1998), relata a façanha de Garcia, supostamente o primeiro habitante europeu de Santa Catarina. Em 1522 ou 1523, esse marujo português, sobrevivente de uma malfadada expedição liderada por Juan Diaz de Solís, que foi comido por guaranis, conduziu um grupo de índios carijós e mais alguns companheiros sobreviventes desde a ilha de Santa Catarina até o Alto Peru. Teria realizado a espantosa façanha de ser o primeiro homem branco a conhecer o reino dos Incas, antes mesmo do conquistador espanhol Antônio Pizarro. Voltou de lá forrado de ouro e prata, mas morreu no caminho.

Aleixo Garcia teria usado a estrada pré-colombiana chamada Peabiru (na língua dos nativos, “caminho de grama amassada”), uma rota sagrada dos índios guaranis que fazia ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, passando por Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraguai, Bolívia e Peru.

Tão misterioso quanto o mítico Peabiru é o túmulo que está escondido em algum lugar da praia da Sepultura. Seu Naro volta ao barracão e pega num canto no chão um pedaço de pedra escura, porosa. A apresenta como prova da existência do tal túmulo. Lasca um pedaço para mostrar que é feita de óleo de baleia. Só ele sabe onde é o local e não conta para ninguém. Já ofereceram muito dinheiro pela informação (“daria pra ficar rico”, exagera), mas nem assim entregou o segredo. “Aí, acaba a história”, justifica.

Durante todo o tempo em que conversamos, seu Naro recebe chamadas ao celular. Atende, olha o mar, concorda, faz alguma observação e desliga. Segunda-feira, explica, capturaram 300 tainhas na Sepultura, um ou dois dias depois, mais 40. Quantidade considerada pequena. Teve um ano, 1949, que 42 mil foram arrastadas a esta praia. Barcos vinham de fora para comprar o peixe diretamente das redes. Era tainha que não acabava mais. Quase 60 anos depois, Naro mantém a vigília sobre um cardume escondido nas pedras, num ano em que a pescaria tem sido fraca por aqui. O celular toca novamente. Depois que ele atende e desliga, pergunto com quem fala tanto. É com o filho, que está em algum lugar do costão, atrás do montão de mato, atento à movimentação dos peixes. Neste momento, chega Claudir, o outro filho de Naro. Aproxima-se do pai e mostra que, para além das pedras, alguma coisa acontece:

– Olha ela, pulando lá fora!

Depois, se afasta para sentar-se numa pedra. Liga um rádio transmissor e troca impressões com o irmão, oculto em seu posto avançado. Coisas da modernidade: rádios e aparelhos celulares ajudando na tradicional pesca da tainha.

Nisso, seu Naro saiu para espantar uns turistas que acabam de chegar. São três casais. Vieram espremidos num fusca e pretendem acampar ali. O nativo explica que eles não podem ficar, o grupo argumenta, insiste, o pescador replica, a coisa ameaça descambar para a discussão, mas, no fim, ele cede e os seis partem pela trilha que leva ao matagal, na ponta da Sepultura, arcados com o peso das mochilas. Coisa de uma semana depois, Naro teria uma altercação muito maior pela frente, certamente o momento mais difícil de seus 80 anos de vida, quando um bando de violentos assaltantes invadiu sua casa. Naturalmente, não buscavam o velho tesouro do Adrião – queriam dólares.

(*) Texto escrito em 2006, para a segunda edição do livro Contam os antigos… História e lendas de Bombinhas

Xepa

Conheci a Xepa numa noite de quinta-feira, uns anos atrás. Cheguei ao local onde o pessoal treina taekwon-do, ao lado do supermercado Costa Esmeralda, e ali estava ela, entre o muro e a calçada no canto do prédio. Como havia um tempo para esperar, fui vê-la de perto. Algo em seu olhar denotava doçura e desamparo.

Ao final do treino, hora e meia depois, ela continuava no mesmo lugar. Fui para casa decidido a voltar e buscá-la. Não foi difícil convencer esposa nem sogra, e meia hora depois eu retornava para levar a Xepa comigo. Ela estava obedientemente à espera, e não reclamou quando a embarquei no carro, acomodando-se tranquilamente aos pés do banco do carona.

Xepa rapidamente se habituou ao novo lar. Era curioso, pois, ao mesmo tempo que apresentava sinais evidentes de abandono, parecia que não vivia nas ruas há muito tempo. Talvez alguém a estivesse procurando, então tratamos de espalhar a notícia do seu paradeiro.

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Xepa foi-se de nossa casa da mesma forma como chegou

Ninguém apareceu, entretanto. E a Xepa conviveu conosco durante quase dois anos. Mas já demonstrava idade avançada, os olhos já nublando sob o avanço da catarata… o que não a impedia de exercer uma avarenta vigília sobre a comida, para azar do Nick (que, aliás, faz poucas semanas nos deixou, depois de mais de quinze anos).

Até que ela adoeceu. Foi perdendo as forças e minguou. Um dia, a pobrezinha estava visivelmente sofrendo. Liguei para a veterinária em busca de orientação. Priscila me pediu que a trouxesse até o consultório.

Peguei-a com cuidado e a coloquei no fundo do carro, ao lado do banco do carona. Assim que se acomodou ali, parou de choramingar. Observava-me silenciosa enquanto fazia o curto trajeto até a clínica. Assim que cheguei, quando a fui retirar do carro, notei que tinha morrido.

Ao que parece, a Xepa estava apenas à espera de seu último passeio, para terminar seu tempo conosco da mesma forma como chegou. Cumprida a tarefa, deixou-se ir em paz.

Conversa com seu Nabor

Começo de noite em Porto Belo. O frio arrepia a pele enquanto espero um compromisso sentado no banco da praça central, lamentando a imprevidência de não ter trazido um casaco. Quase trinta minutos depois, convencido de que a reunião já era, percebo que o tempo não foi de todo desperdiçado: da direção do Baixio vem o seu Nabor, com o boné característico, as mãos às costas e o corpo levemente curvado para a frente. É a oportunidade que esperava de propor-lhe uma entrevista. Mas cumprimento-o quando passa e deixo que se vá. Vejo-o atravessar a praça em direção à avenida. Deve estar indo para casa. Olho no relógio e decido seguir o homem.

Alcanço-o duas quadras adiante, quase em frente à padaria da Catarina. Chamo por ele, que para e escuta enquanto explico meu projeto de recolher depoimentos sobre a história de Porto Belo a partir da vivência de alguns moradores. Uma pesquisa, afirmo (na verdade, a ideia é escrever um livro e também gravar um documentário com a parceria dos amigos Thiago Furtado, acadêmico de jornalismo, e Isa Manerich, fotógrafa). Poderia visitá-lo outro dia, na companhia desses colegas, e gravar uma entrevista? Seu Nabor responde que sim, mas não demonstra grande entusiasmo.

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Seu Nabor: “Corria Bombinhas inteira vendendo doces”

Conversamos no curto trajeto até a esquina que leva a sua casa. Quando já me despedia dele, o rosto se lhe ilumina e o velho carpinteiro naval, 89 anos de idade, conta que, faz alguns dias, umas moças do Rio de Janeiro conversaram com ele no Trapiche dos Pescadores. “Fizeram um monte de fotos”, diz, animado. Digo que vi um retrato seu recentemente, publicado pelo fotógrafo da cidade, Gilmar Castro (também autor da foto que ilustra este texto). “É um grande amigo meu”, replica.

Agora seu Nabor está mais à vontade e disposto a prosear. Lembra que aos sete anos “corria Bombinhas inteira, vendendo doces”. Recompõe, de memória, o local onde estamos tal como era antigamente, o engenho de açúcar que já não existe mais. Sorri ao contar da labuta diária: “A gente vivia sob jugo de trabalho pesado, mas era um tempo agradável”, recorda.

Seu Nabor revela que tem uma cirurgia marcada, para retirada de uma hérnia. Diante da incerteza do resultado, ouviu do médico que será coisa simples, uma vez que ele é magro, então o caroço não acumula muita gordura. “Vai ser o que Deus quiser”, pondera, reconhecendo que estamos aqui apenas de passagem, “emprestados pelo tempo”. E com essa reflexão ele se despede, não sem antes desejar um “Deus te abençoe”. Ao senhor também, seu Nabor…

Atualização em 30/01/19: Em 2015, seu Nabor teve o nome envolvido em um rumoroso caso de polícia, acusado de integrar um grupo de pessoas que aliciava menores. Chegou a ser preso, mas foi solto dias depois. Seu Nabor morreu em dezembro de 2017.

Cezinha: suor pela música

Como é normal de qualquer cara que tenha crescido num ambiente impregnado de acordes, Ângelo César da Silva, 35, corria mesmo sério risco de se tornar o músico que é. Contrabaixista com contribuições em boa parcela da produção musical do Estado e tendo conhecido um relativo estrelato compondo a “cozinha” da festejada banda portobelense Uniclãs, Cezinha faz pouco mais de um ano decidiu assumir a difícil tarefa de pagar suas contas exclusivamente com o suor da sua arte. Percalços à parte, está satisfeito com sua decisão.

Nas noites de sexta ou sábado, o Tatuíra, no centro de Porto Belo, é o palco mais frequente do músico. Cezinha, entretanto, se desdobra: grava com artistas já tarimbados, muitos dos quais é fã assumido (o itajaiense Vê Domingos é um deles), participa do Sarau Afro-açoriano, premiado projeto de música folclórica de Porto Belo, do Música Orgânica, capitaneado pelo ex-parceiro de Uniclãs André “Coveiro”, e também dá aulas do seu instrumento em escolas de música e para particulares. “Não tem como ser só uma coisa”, explica. “Todo dia tem que estar correndo atrás”.

Filho e neto de cantadores de reis (sua reminiscência musical mais primitiva é um “terno” que testemunhou na infância, na casa de vizinhos na Enseada Encantada), natural de Porto Belo, quando garoto Cezinha se apropriou do violão paterno e criou o hábito de se trancar no quarto para aprender a tocar e compor. Tinha nessa rotina a cumplicidade do primo Jefferson Otto. Juntos, rabiscavam composições, curtiam o início da MTV no Brasil, ouviam discos e dividiam o gosto pelo pop rock nacional do final dos anos 1980, começo dos 90.

Nesse período, Cezinha vivia em Itajaí. Quando, aos dezessete, voltou a morar em Porto Belo ― que havia deixado aos seis ― ele e o primo se uniram a André Gomes de Miranda. “Coveiro” já cantava e tocava, e foi fundamental para alavancar os sonhos da dupla. Juntos, convocaram outros aspirantes a músico, arranjaram instrumentos emprestados e começaram a animar os intervalos de recreio no Colégio Estadual Tiradentes, sob o nome Cordas de Varal. Tornaram-se populares entre a garotada da escola, embora o som não fosse aquelas coisas, segundo Cezinha.

Na época, outro colega tocava baixo e, quando saiu, não restou-lhe alternativa que não assumir a função.

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Cezinha: “Tô ralando bastante”

E foi com ele tocando baixo que os amigos fundaram a Tormenta, um estágio musical um pouco mais avançado, com apresentações em bares e eventos da cidade. A banda terminou e os integrantes se separaram: Cezinha, Jeffinho e o guitarrista Alex Sancho ― outro nome que terá importância na história do músico ― foram para a Gato Preto, de Tijucas; Coveiro se reuniu a outros colegas e criou a Al Jihad.

UNICLÃS

Não demorou, entretanto, para todo mundo voltar a se reunir, dessa vez sob as asas de um voo bem mais ambicioso: a Uniclãs. O estopim dessa reunião foi a descoberta da veia artística do também primo Fernando Kruscinski: Nando não apenas compunha, como cantava bem, possuía timbre marcante. Em torno dele, todos os amigos resolveram apostar num projeto autoral. Batizaram a iniciativa Uniclãs para evidenciar a mistura de influências musicais que a banda teria e a forte afinidade entre todos.

“Era mais que uma banda. Era uma família”, lembra Cezinha com saudade. “Era” talvez não seja o tempo verbal mais correto, porque o grupo está numa espécie de stand by, após várias idas e vindas. Mas o período mais marcante da banda, de fato, passou. Foi no início dos anos 2000, quando pôs seu nome no mapa da música catarinense, conquistando um festival de bandas em Joinville, e gravando um clipe como prêmio, depois uma demo e, em 2003, embarcando para São Paulo para gravar, no estúdio do ex-RPM Luiz Schiavon, seu primeiro álbum, Viagens no Exílio.

“A gente nunca tinha saído da nossa região”, Cezinha sublinha a mudança que isso representou. Talvez uma mudança muito súbita, e por isso a rapaziada não conseguiu administrar, ele pondera. A Uniclãs obteve sucesso, realizou grandes shows, o último no teatro de Itajaí, em novembro do ano passado, em mais uma tentativa de retorno. Uma nova reunião, no momento, não parece provável.

NOVOS PROJETOS

Cezinha lamenta, mas não tem muito tempo para remoer o passado. É preciso certo malabarismo para administrar a carreira de músico, colocar o contrabaixo a serviço de diferentes artistas e da aspiração de quem o tem como referência. Para isso, “cancha de palco” só não basta. Por isso, Cezinha concluiu o Conservatório de Música de Itajaí (onde conheceu a intérprete Adriana Benvenuti, com quem casou há dois anos e meio) e está cursando bacharelado em música em Curitiba (PR). “Tô ralando bastante”, garante.

E nisso já se vão uns vinte anos de “ralação”. Natural que, em algum momento, uma sombra de dúvida paire sobre sua cabeça. É porque a rotina às vezes pode esmagar o entusiasmo e nos fazer encarar a temível pergunta: “Será que estou no caminho certo?”. Cezinha mais de uma vez se questionou a respeito. O tempo tem lhe ajudado a formular a resposta: “É a minha profissão”. Uma sentença simples que ele faz acompanhar pela certeza de que dificuldade e recompensa caminham num mesmo compasso, tecendo melodias em tons graves a intervalos de terças, quintas e sétimas, maiores e menores, acordes que o portobelense domina com a mesma facilidade com que se espana da mente uma ideia ruim. Cezinha é músico. E gosta disso.

Mano Dadam

Cláudio Dadam extrai da simplicidade seus versos d’alma (*)

Sexta-feira, 1º de outubro de 2004, uma noite especial no centro de Porto Belo. O pequeno espaço da Livraria Oceânica, no Centro Comercial Dolce Vita, está apinhado de rostos conhecidos. Do lado de fora, nos bancos posicionados no passeio, entre concreto e grama, velhos amigos conversam animados, violões são tocados e antigas histórias saltam da memória. Do lado de dentro, atores novatos da “Trupe dos Avessos” fazem seu debut recitando versos escritos pelo homenageado da noite.

A plateia, metida entre livros e revistas, delicia-se com a encenação, que é coisa rara de se ver na cidade. Em um dos atores, os olhos crescem de apreensão, um suor fino marca a maquiagem branca sobre o rosto moreno, o texto escorrega da língua, não sai. Mas, para quem vê, entre goles de vinho e satisfação indisfarçada, tudo está perfeito. Do lado de fora, a mesa com uma cerveja no centro reúne em volta o pessoal da banda “Uniclãs”. O tema da conversa é a política (estamos nas vésperas da eleição municipal).

Do outro lado, Carioca puxa um chorinho, Claudinei emenda com um repertório pop. Todos concordam que a noite está excelente: um pouco do que há de melhor na produção artística local reúne-se ali e, no centro de tudo, o motor da festa sorri satisfeito: “Está tudo ótimo”, comenta Cláudio José Dadam, os trinta anos recém-completados dia 20 de setembro. Ao lado da mãe, Enedir Santiago, a caneta na mão, recebe os cumprimentos pelo lançamento do seu primeiro livro, “Sereno de Lírio”, e autografa alguns exemplares.

Essa noite assinala o nascimento do poeta.

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Mano Dadam: “Esse sereno é um perigo”

ESTADO POÉTICO

Não que Cláudio Dadam, que todos chamam de Mano, tenha se feito poeta durante o processo de composição de “Sereno de Lírio”. Na verdade, seus versos vêm de longe, estão com ele desde sempre, por assim dizer. Hoje, porém, como atestam os amigos, Mano é poeta 24 horas por dia. Basta uma conversa rápida para concordar com essa afirmação. Feito um profeta, ele fala por rimas, substituindo a conversa objetiva por citações nem sempre fáceis de compreender, mas que dão uma indicação precisa do quanto a veia poética está saliente em seu dia a dia. Claro que, para muita gente, este permanente “estado poético” causa alguma estranheza, para dizer o mínimo.

Mano demonstra certo desgosto com essa impressão. Conversamos na sua casa em uma tarde de terça-feira (2/11), e ele comentou que, na noite anterior mesmo, ouviu, de um chegado seu, comentários negativos que mexeram com ele: “Nem a fé é tão inabalável assim”, justifica, para depois emendar: “Fico ressentido com esse julgamento, mas a gente tira de letra, cria anticorpos”. Mano não conta o que exatamente ouviu, mas, ao que parece, o colega teria questionado a autenticidade da sua personalidade artística, insinuando que se trata de um modismo, uma influência exercida por terceiros.

Tudo porque, como já se falou, Mano parece ter se revelado poeta ontem. O que muita gente não sabe, e ele conta agora, é que seus versos remetem aos bancos da escola, lá pela quinta ou sexta série da Escola Básica Tiradentes. O menino daqueles dias se empenhava em escrever boas redações e as professoras coroavam seus esforços com elogios. Aos onze anos, inspirado pelos amigos, produziu uma espécie de zine, chamado “O sol, o Sagrado” (um trocadilho com a palavra “solo”). Aquele ano, porém, ficou marcado por outro motivo: foi em 1985 que o avô, Zózimo Antônio Santiago, morreu. A notícia da morte veio primeiro como pressentimento e Mano passou, a partir dali, a caminhar de acordo com a sua intuição.

FUTEBOL

Dos primeiros tempos de criação não restaram muitos vestígios. Aos dezessete anos, o rapaz lotou uma caixa de papelão com cartas, textos, desenhos e rimas, tudo o que dizia respeito à sua vida, convivência e segredos afetivos, e lançou ao fogo, essa ferramenta voraz do inquisidor. O artista explica que a atitude, um tanto extremada, foi uma forma de camuflagem, o escudo de uma personalidade tímida e reservada. Com isso, o poeta ficava escondido, negligenciado no fundo do inconsciente. Sobrava o esportista.

Mano passou boa parte da juventude correndo atrás de uma bola de futebol. Nesse esporte, que ainda pratica com disposição, é reconhecido como craque. Grandalhão, rápido e habilidoso, possui espaço certo em qualquer equipe da região. Durante uma época, tentou profissionalizar-se no esporte, mas foi um período de idas e vindas que não resultou em muito sucesso. O poeta ficou por trás das cortinas, aguardando sua vez.

Para encurtar uma história longa e chegar ao atual momento de criação literária, basta dizer que, a partir de setembro de 2002, Mano passou a escrever compulsivamente. Encheu várias folhas de cadernos com seus versos, material suficiente para editar treze livros – cada qual com uma temática diferente – e publicou o de estreia, “Sereno de Lírio”. O título vem de uma antiga advertência que a avó, Leontina Santiago, lhe fazia quando moleque: “Cuidado com esse sereno, que é um perigo”. Do conselho ele partiu para uma viagem ao passado, relatou suas experiências e, sobretudo, exaltou a sabedoria dos mais velhos, algo bastante significativo nesses tempos de rebeldia e desobediência juvenil.

VERSOS SIMPLES

Os versos do livro são simples, despojados, com uma rima bem marcada. O conteúdo, além de referências ao passado e ao convívio familiar, é carregado de ensinamentos que a vivência do autor acumulou e, generosamente, compartilha com o leitor. Não quer dizer, por outro lado, que Mano pretenda dar lições de moral, justo ele que vive, como faz questão de ressaltar, uma vida desprovida de ambições e levada a extremos. Nada disso. Apenas reflete a angústia do artista perante um mundo cada dia menos solidário, menos humano. Mesmo assim, sua poesia não deixa, em momento algum, de ser positiva, esperançosa. Essa característica é marcante também na obra ainda não publicada. Mano planeja para o início de 2005 levar ao prelo “Sonhos Azuis”, coletânea de versos apanhados ao acaso, durante passeios oníricos. Na sequência deverão vir “As Escrituras do Ar”, cujos temas, curiosamente, são releituras daqueles antigos textos que viraram cinzas na fogueira, mas que, como fênix, voltaram exigindo seu lugar, e “O Livro Negro”, uma apreciação sobre as tensões e a hipocrisia escondida no convívio familiar, mas que nem por isso dissipam a ternura do lar.

Muito mais ainda há de vir da caneta inquieta de Mano Dadam. Encharcado no sereno, vivendo como boêmio na noite da cidade, esse rapaz “da cor da lua”, de cabelos compridos, barba por fazer e sorriso largo renuncia à ira e vive de sonhos. O maior deles, transmutar seus versos em pão, viver da sua arte com a mesma simplicidade que são seus versos, celebrar a sua espiritualidade e, vez por outra, tocar as pessoas com a poesia que ele retira da alma. Como o poeta mesmo diz: “A minha consciência me permite saber o que eu sou, mas não o que eu posso ser”. Que seja assim, então.

(*) Texto desenvolvido originalmente para a disciplina de História da Arte do curso de Comunicação Social (Jornalismo) da Universidade do Vale do Itajaí, em novembro de 2004

Suor pelas trilhas da Costeira

“Dil, vamos correr uma de 30 devagarzinho amanhã, 6 horas da matina?”, convidou, pelo Facebook, o Coveiro. Era segunda-feira (20), um dia após a Meia Maratona de Balneário Camboriú. “Vamos na Santa Luzia e depois a trilha até o Zimbros”, detalhou o amigo, músico e viciado em corridas. As pernas ainda estavam moídas pelo esforço de domingo, mas só me ocorreu uma coisa para responder: “Simbora!”

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Selfie no morro de Santa Luzia. Ao fundo, Tijucas

Assim, antes que começasse a clarear, enquanto quase todo mundo aproveitava o feriado de Tiradentes para amaciar um pouco mais o travesseiro, fiz o primeiro pit stop no Cezinha, cúmplice nesse estranho ritual de autoimolação, e dali partimos para a casa do André. Trio reunido, dia clareando, seguimos rumo a Santa Luzia.

A primeira etapa da jornada ocorreu sem problemas. Chegamos ao pé do morro que liga aquele bairro de Porto Belo à Costeira de Zimbros e iniciamos a subida, que é íngreme, caminhando. A partir dali, seria uma tortuosa jornada subindo e descendo por trilhas que já se tornaram velhas conhecidas dos praticantes de corridas de aventura. As provas do gênero que acontecem na península passam por ali. Mas a minha relação com a Costeira vem de antes disso.

Em 1999, o finado jornal Pirão d’água realizou uma de suas mais memoráveis coberturas. Na época, havia uma polêmica em torno de uma proposta da prefeitura de Bombinhas. O executivo queria alterar o zoneamento daquela área para permitir a construção de uma “estrada panorâmica” que ligaria o município à BR 101 ― e de quebra, construções até 100 metros acima do nível do mar. Era a chamada Cota 100.

“Uma das regiões de maior beleza e importância econômica do município de Bombinhas, aproximadamente sete quilômetros de mata Atlântica, vegetação de costão e floresta quaternária, emoldurados por rochas, pequenas lagoas e praias quase intocadas”, assim descreveu o jornal aquele trecho de solo bombinense, que, sem dúvida, possui uma das mais belas coleções de praias agrestes do Estado.

Na ocasião, a pressão popular, comandada por associações de bairro e ambientais da cidade, freou a proposta. Por causa disso, quinze anos depois, pudemos reencontrar a famosa Gruta do Padre Jacó e beber da água límpida e abundante que escorre pelas pedras, numa pausa bem-vinda depois dos primeiros dez quilômetros. A luz filtrada pelas folhas iluminava a trilha em raios “bíblicos”, atenuando o cansaço de quase duas horas de esforço e sobe e desce constante, se equilibrando no terreno acidentado e escorregadio, tarefa especialmente penosa quando se tem o joelho um tanto avariado. Imaginar que uma região como aquela corria (corre) o risco de desaparecer, com a quantidade de mananciais que há e a crise hídrica que inferniza as altas temporadas, só comprova a nossa incapacidade de antecipar desafios futuros ― para dizer o mínimo.

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André e Cezinha na Praia Vermelha: “Natureza nativa”

A Costeira, nesta época do ano, é o que se pode chamar de santuário. Quase ninguém perturba a tranquilidade das praias de areia branca e água cristalina. Nessa manhã, apenas três cansados corredores tropeçavam pela orla, um ou outro pescador ocasional empoleirava-se no costão e os pássaros podiam cantar à vontade. Na praia Triste, quando estive lá por volta de 2003, vivia José Osnildo Soares. Naquela ocasião, eu o entrevistei para o jornal da faculdade: “Seu Osnildo conta que vive sem energia elétrica, geladeira ou televisão, só o acompanha um radinho a pilha. Nas noites da Costeira, percorre a propriedade apenas com uma vela ou lanterna. ‘Aqui é na base do Deus nos acuda’, diz. Os mantimentos busca em Santa Luzia, uma vez por mês. Ele caminha pela trilha e leva uma hora até chegar ao mercado mais próximo. A encomenda chega de barco. Muito do que come, entretanto, ele planta ou pesca. A rede que ele mesmo confeccionou fica imersa em frente de casa. Os pescadores da região é que a lançam ao mar, pois seu Osnildo não sabe nadar”. Na oportunidade, aos 52 anos, completava “dez anos de solidão” na Triste. Nessa terça, não encontramos ninguém na casa.

Praticamente três horas depois de iniciar a corrida ― que para o Coveiro e o Cezinha serviu de preparação para os 42 e 21 quilômetros, respectivamente, do Vila do Farol Indomit, que ocorre dia 15 de agosto, e para mim como prova de que essa coisa de cirurgia no joelho é “para os fracos” ― chegamos à comunidade de Zimbros. Precavido, André havia atulhado a mochila com suplementos e água, mas ainda parou num mercadinho para reforçar o rancho, comprando coca-cola (um repositor eficiente, explicou-lhe a nutricionista) e água.

Nessa altura do desafio, com as pernas entorpecidas, os pés doloridos e o fôlego escasso, chegamos enfim ao pé do morro de Zimbros. O sol já batia forte e foi um martírio subir. Sentia-me como um hebreu atravessando o deserto. Com suas curvas acentuadas e grande inclinação, o morro de Zimbros é um desafio e tanto para qualquer corredor, por experiente que seja. Uma vez que se alcança o cume, ainda é preciso rezar para que os cães que guardam a Reserva Morro de Zimbros e a propriedade em frente não estejam do lado de fora da cerca.

Os cães ladraram, a caravana passou. Embalados pela descida, decidimos fechar o ciclo (que “não tem fim”, como diz a música do Uniclãs gravada pelos meus parceiros de corrida) e voltar até a casa do André ― considerando que deixamos o carro do Cezinha lá, não havia muita escolha. No final, quatro horas de corrida/caminhada, quase 30 quilômetros de percurso e a satisfação de superar um grande desafio. Para quem se habitua a correr dez quilômetros, o triplo disso parece uma enormidade. Chegar ao fim da jornada e confrontar a proeza que cometeu ― e ainda melhor, tendo com quem compartilhar ― é um prêmio saboroso. O risco é sempre o mesmo: o de viciar na adrenalina.

Seria isso “oferecer o corpo em holocausto”? Vai saber…

Meia maratona com um joelho só

“É, vai ter que operar”, concluiu o ortopedista, depois de ler o relatório da ressonância que descrevia, em detalhes, a ruína em que estava o meu joelho esquerdo. Ruptura completa do ligamento cruzado anterior. Ruptura do corno posterior do menisco medial. Colapso do osso subcondral na porção central do côndilo femoral. Edema ósseo na patela. Cirurgia e seis meses de recuperação. Três de fisioterapia. Três de fortalecimento muscular. Até lá, nada de fazer coisa alguma. Diante do estrago, o jeito foi pôr o nome na lista do mutirão que o médico promove no hospital em São João Batista, onde conserta joelhos por atacado e… correr os 21 quilômetros da 5ª Meia Maratona de Balneário Camboriú.

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Esta segunda decisão não foi tomada, na hora, lá no consultório. Na verdade, estava decidido a acatar a recomendação médica. Até que o parceiro de corridas e amigo Cezinha jogou a semente da discórdia. Aquela velha história: uma corridinha de leve, só pra ver como está, quem sabe? O joelho não dói, não incha, então… Uma ideia desprovida de bom-senso começou a fermentar na cabeça e, no sábado, fim de tarde, estava eu na Barra Sul para buscar o kit da prova, olhando a orla e pensando na burrice que estava prestes a cometer.

A prova ocorreu no último domingo, às 7 da manhã. A organização falou em 1.700 inscritos. Entre o pessoal de Porto Belo, estavam o André (Coveiro), o Maurício, o Aurélio (depois, encontrei também o Pablo). E o Cezinha, claro. O clima estava bom e o céu parcialmente nublado. Chegamos a poucos minutos da largada e não houve tempo para ansiedade. Logo estávamos nos movimentando em meio a uma turba que ocupava a Avenida Atlântica, rumo ao Morro da Rainha, o pior trecho da corrida.

tenis-2A boa notícia foi que o joelho não reclamou. E assim, Cezinha e eu, fomos avançando em bom ritmo. Em meia hora, já estávamos ao pé do morro. E ainda com fôlego para subir a trote. A descida foi um prêmio, mas havia um trecho inesperadamente longo até o retorno. Um pouco mais à frente, dobramos à direita em direção à praia Brava. O pessoal do pelotão da frente já cruzando com a gente no caminho de volta. Pela orla, meninas em roupa de baile, cara de sono, saindo das boates. Num carrão, quatro garotas. A motorista reclamou que queria tirar o carro e o pessoal atrapalhava. A turma ironizou a “madame” e ela passou xingando todos, para diversão geral.

Fizemos o retorno, as pernas já pesadas, o ritmo mais lento, o sol começando a esquentar. Uma hora e dez de prova. O morro de novo à frente. Desta vez, subir não foi tão simples. Antes do topo, tivemos que caminhar. Porém, tínhamos a descida para recuperar o fôlego e, nas nossas contas, conseguir o gás necessário para fechar a meia hora que faltava. Mas descer morro não é moleza, ainda mais com um joelho estropiado. Os músculos começaram a sofrer. Minhas coxas estavam em brasa e o Cezinha reclamava do tornozelo. Daí para frente, seria na raça.

Minha expectativa de ter pernas para chegar não se confirmou. Quando percebi que não teria condições de manter o ritmo, “liberei” o Cezinha e fiquei para trás. No quilômetro dezessete, tive que caminhar. Estava exausto, maldizendo a péssima ideia de ter vindo sofrer nesse asfalto tendo corrido apenas uma vez em quase um mês, até que uma das corredoras passou por mim e ordenou: “Vamos, vamos! Não para!” Embalado pelo incentivo, retomei o trote, mas as pernas já tinham virado gelatina. Minha expectativa era pelo menos chegar até a Praça Tramandaré, mas não havia jeito. Parei mais uma vez.

A partir daí, comecei uma disputa de tartarugas com outro corredor. Ele passava por mim correndo, mas logo parava, com dor nas costas. Eu passava por ele correndo e parava, esfalfado. E assim fomos. No caminho, os outros corredores incentivavam. Um deles me deu um gel de reposição energética. Agradeci a isso e aos postos de água da organização, que permitiram me arrastar até o fim. Os quilômetros iam diminuindo, dois quilômetros, um quilômetro. Quando corro por aí, vencer um quilômetro é quase como ir de carro à padaria. Uma moleza. Não nesse domingo. Por mais que tentasse manter um ritmo de corrida, as pernas desobedeciam, exigiam parar. Mas no trecho final ainda consegui dar um “pique” e concluir a prova dignamente, na 524ª posição, 2h17 de esforço. Numa exaustão quase absoluta. Do dedão até a coxa, as pernas absurdamente doloridas. Tudo doendo, menos o joelho.

Está aí uma boa desculpa para continuar fazendo bobagem… (desde que meu médico não saiba, claro)

 

Thiago Furtado: poesias e uma Remington 22

Talvez seja um exagero dizer que a coleção de clássicos que Thiago Furtado ganhou quando criança tenha definido o seu presente, mas é dos livros da infância que ele lembra quando perguntam da sua inclinação pelas letras. Thiago acaba de se matricular no curso de jornalismo da Univali, e o que fará disso ainda pertence ao futuro. No momento, ele escreve poesias.

A veia poética não é uma descoberta recente. Não para ele. Talvez para os amigos, pois apenas em outubro de 2013 Thiago começou a publicar as poesias num Tumblr (espécie de blogue). A primeira saiu num sábado. À noite, havia uma festa de aniversário e um dos convidados elogiou a postagem. “Fiquei me sentindo um escritor”, lembra o auxiliar de topógrafo de 25 anos natural de Tijucas, espantado com o rápido feedback. Agora, Thiago é frequentador das feiras e exposições de arte da região, onde é visto exibindo as suas “Poesias no Varal”.

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Thiago e suas poesias no varal (foto por Isadora Manerich)

“O processo de botar [as poesias] na rua foi demorado”, reconhece. Conversei com Thiago num fim de tarde de sexta (12) do último mês de 2014, no Du Cais. Porto Belo é seu destino de quase todo fim de semana: a família tem uma casa no bairro do Perequê, por isso Thiago e a namorada, a fotógrafa Isadora Manerich, estão sempre por aqui.

POEMAS NO VARAL

Mas ele ia dizendo que rabiscou seus primeiros versos no final do ensino fundamental. Na verdade, fragmentos de ideias e tentativas de composição musical, que desviavam sua atenção das disciplinas mais enfadonhas e preenchiam as páginas do final dos cadernos — o “porão”, como ele as chama, e foi daí que tirou o nome da sua página.

Após isso, Thiago “se convidou” para expor algumas poesias no Espaço Bonequiando, no centro de Porto Belo, no último mês de junho. Esticou um varal e pendurou oito poemas datilografados numa Remington 22. “Pensei no lance do cordel e a Isa deu  a ideia da máquina”. E o casal gostou tanto da experiência que a repetiu umas dez vezes nos últimos meses. Do porão para o varal. De escritor anônimo a artista expositor.

“A iniciativa é mais importante que a qualidade dos poemas”, acredita Thiago, que no entanto vê valor no seu trabalho. Não fosse isso, certamente jamais o haveria libertado do fundo dos cadernos. O fato é que, ao expor (e se expor), o tijuquense amplia seu círculo, conhece pessoas novas, expediente que valoriza bastante. “Não tem muita gente que para pra ler, mas quando tem algum feedback é muito massa”, destaca.

Seu processo de produção nada tem de sofisticado. O jovem escritor, que antes de prestar vestibular para jornalismo havia cursado direito, engenharia de aquicultura e se formado em gestão ambiental, sem achar muito uso para uma coisa nem outra, lê quase nada de poesia. Também não pensa muito em estrutura, métrica, apenas observa a rima. Pega sua inspiração de frases soltas, sentimentos, e com esses fiapos — muitas vezes gravados em mensagens de voz no celular para não esquecer — dá início à sua feitura poética. “Não tenho isso muito claro. Não sei classificar nada do que eu faço”, diz.

Certo é que aquela coleção de clássicos da literatura infanto-juvenil está no começo dessa jornada. Do gosto pela leitura, estimulado por dona Ieda, orientadora educacional que tratou de incutir no filho essa característica preciosa desde cedo, que redundou no gosto pela escrita. Thiago foi alfabetizado ainda antes de pisar na escola. Só não pôde corresponder à mãe no seu desejo de torná-lo advogado. Tudo bem, pois Thiago fez bom uso das lições.

No futuro um livro, quem sabe… A ideia o assombra: “[A obra] fica mais no mundo material”. E também planos ao lado da namorada, com versos e fotos dividindo espaço, um documentário audiovisual sobre a banda da qual são fãs (Uniclãs) e tantos outros projetos. “Não tenho compromisso com nada”, explica sua falta de pressa em emplacar as ideias. Mas tenha uma certeza: se você for a alguma tertúlia cultural na região, vai encontra o Thiago por ali. E com ele, as poesias no varal.

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