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Pirão: e aqui chegamos ao fim

O jornal Pirão d’água durou até dezembro de 2001. Chegou até a edição 103. Na época, estava sendo tirado semanalmente. Mas, para mim, ele havia terminado antes.

jornal

Terminou às vésperas de mais uma eleição, em setembro do ano anterior. Como é típico do período, os nervos estavam a mil e os problemas só começando para a gente. Calhou que o PDT, que estava com candidato no páreo (Arno Baron), nos procurou para publicar uma pesquisa favorável no jornal. E o Luiz concordou em publicar.

Mais tarde, porém, o PMDB, do Sérgio Biehler, surge com outra pesquisa, também solicitando espaço no jornal. Os resultados de cada uma completamente disparatados entre si. Mas havia uma compensação financeira maior nesta segunda proposta e devo dizer que a gente balançou, especialmente por achar que esta segunda pesquisa condizia melhor com a realidade. O PDT era apenas a terceira força e não havia número que pudesse dizer o contrário.

Mas havia um acordo firmado com o PDT e isso foi motivo de discussão entre a gente. Por outro lado, os peemedebistas pressionavam também. O jornal sairia exatamente na sexta antes da eleição. Com a pesquisa na capa, poderia ser decisivo no resultado das urnas.

E assim, um Candôco completamente indeciso pegou o Fiesta emprestado de sua mãe e partiu para São José, na Grande Florianópolis, sexta-feira à noite, para rodar o jornal.

Assim que pôs os pés na gráfica, já estavam lá o Valmor Moraes, vice da chapa trabalhista, e o Piti, advogando (pasmem!) pelo PMDB. E tome discussão, bate-boca, um querendo parar as máquinas, o outro que o jornal fosse imediatamente para as rotativas.

À beira de um colapso nervoso, o Luiz saiu da gráfica e caminhou pela ruazinha lateral sem saída onde ficava a Riosul até um barzinho que havia no final dela. Sentou junto ao balcão para tomar alguma coisa, com o Piti na sua orelha e sem saber o que fazer.

Lá fora, um orelhão que havia no lado do bar começa a tocar. Toca até que algum curioso resolve ir lá atender. O cara escuta e grita para dentro do bar:

– Tem algum Luiz Dadam aí?

O Candôco arregala os olhos e, sentindo-se dentro de um daqueles filmes de suspense, vai até lá atender. Era a esposa do Sérgio Biehler, Josiane, que resolveu aplicar um pouco mais de fervura na cabeça do pobre do Luiz. Perplexo – e já por essas alturas, furioso – o Candôco retornou até o balcão do bar, onde o Piti, em tom de quem sabe dessas coisas – e provavelmente sem gaguejar – lhe bate nas costas e diz:

– Bem-vindo à política, meu amigo…

20 graus na subida: meu relato dos 21km do Soloman

Na saída da picada que dá acesso à ponta direita da praia da Tainha, uma dupla combina parar para uma foto. Ofereço-me para clicá-los, mas eles, polidamente, declinam. Havia esquecido: atualmente, essa gentileza não é mais necessária. A moda é o selfie.

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Antes e depois: a saída em Zimbros e a chegada em 4 Ilhas, uma eternidade depois (foto: Elisabete Mafra)

Devia estar, nessa altura, pelo oitavo quilômetro da corrida. A largada dos 21 quilômetros do Soloman havia sido quase uma hora antes, na ponta direita da praia de Zimbros. Cerca de trinta corredores se alinharam na largada improvisada, animados, no final da manhã de sábado, 2 de agosto. Dia estava ensolarado, a temperatura em ascensão. Nada que lembrasse o inverno.

A chegada, em Quatro Ilhas, parecia a uma eternidade de distância. Correndo na areia da praia, a mochila que o André (Coveiro) gentilmente emprestou pesava na costas – inadvertidamente, havia abastecido com muita água. Também não a tinha ajustado direito, e ela dançava desajeitadamente a cada passada. Procurava, prematuramente, regular a respiração e fazer baixar a adrenalina. As pernas já doíam e eu tentava me convencer que, assim que o corpo aquecesse, a dor sumiria.

Do Zimbros para o início da praia de Canto Grande, na altura de Morrinhos. A areia fofa não ajudava e, na frente, alguns corredores já poupavam fôlego caminhando. O final da praia aparecia distante, minúsculo, e já me parecia impossível chegar até lá. Nas minhas contas, se chegasse inteiro até a Tainha, teria chances de terminar o percurso.

Finalmente, o início da trilha da Tainha e a promessa de sombra e um pouco de descanso, já que, seguindo a cartilha do André, iria poupar o fôlego galgando a passo as subidas. Já estava sem ar e não era o único. A trilha estava escorregadia, provavelmente em função do pé d’água da noite anterior, e era preciso cuidado. Mas a vista da baía de Zimbros compensava e não era raro quem ficasse boquiaberto com o visual.

Um pouco na frente, chapinhava na lama, com mais dois corredores à frente, quando passa pela gente o cara de que todos se admiravam no começo da corrida. Barbudo e praticamente em pelo, apenas de calção, o sujeito corria descalço, feito um aborígene. Passou pela gente como um foguete.

Na outra ponta da pequena praia da Tainha, um posto de abastecimento de água. Havia ainda muita na mochila, então sigo em frente. Hora de dar a meia-volta e iniciar a subida. Hora também de um lanche. Saco minha barra de cereal para o almoço. A subida é íngreme e procuro ânimo repetindo que “toda subida premia com uma descida”. Com esse mantra na cabeça e passando ileso por um cachorro que o garotinho, seu dono, acalma, chego à estrada.

Um pouco de plano e mais subida. Procurando nacos de sombra no caminho, conjecturo sobre a razão de estar ali. Predisposição genética, herança de nosso passado de caçadores-coletores, que nos gravou com o gosto pela vida ao ar livre, como afirmou Carl Sagan? Impulso irresistível pelo risco e a aventura, como sugere Jon Krakauer? Um pouco de abstração é bem-vinda nessas horas.

Enfim, as árvores param de apontar para cima e o azul do céu indica a descida. Ganho um abraço refrescante do vento, como que dizendo: “Agora está comigo parceiro, fica tranquilo. Vai ser bico”. Emparelho com outro corredor que me pergunta sobre qual distância percorremos. Chuto uns dez quilômetros. Pergunto sobre o tempo de corrida: uma hora e dezessete. Qual a temperatura? Depois de um tempo para que o celular ache o sinal, 20 graus. Parece quarenta…

Leonardo é de Curitiba e está um período treinando em Bombinhas. Já fez essa trilha. Com uma câmera Go Pro colocada sobre a fronte, vai gravando o percurso. Tem feito isso nas últimas provas de que participou, para montar um álbum de imagens.

Com o colega ao lado, estamos de volta ao nível do mar. Cruzamos rapidamente a Conceição e começamos a enfrentar a enormidade de areia da praia do Mariscal. Melhor pensar no que ficou para trás. A panturrilha esquerda começa a reclamar do esforço. Leonardo sugere correr um pouco na linha da maré para esfriar a perna. É o que faço, mas o cansaço é evidente. Diminuo um pouco a marcha e me concentro em seguir adiante: “Só até aquele guarda-sol ali”, “agora, só até aquele prédio lá”…

Uma eternidade depois, o fim da praia. No posto de abastecimento de água, recebo agradecido, com as mãos tremendo, o copo de água fresca. A pressão desaba e temo desmaiar ali mesmo. Adiante, o asfalto do morro do Mariscal oferece o consolo de uma caminhada. Com calma, batendo papo, eu e o Leonardo iniciamos a subida. Já são duas horas de corrida.

“Daqui, dependendo da descida, são uns quarenta minutos”, Leo tranquiliza. No topo, porém, a panturrilha trava. Devo agradecer ao Coveiro pelas meias de compressão. As câimbras teriam vindo mais cedo, com certeza. Consigo dar uma meia-sola na perna e descemos o morro, conversando sobre futebol (meu parceiro é atleticano, do Paraná).

Ao fim da descida, mais câimbras, e não só nas panturrilhas. Leonardo também enfrenta as suas. Mas conseguimos vencer o morrinho que leva à praia de Quatro Ilhas. Só que ainda falta um último desafio: é preciso dobrar à direita e subir o morro daquele lado, só um quilômetro para acabar, diz a moça que indica o caminho.

Na subida, mais inteiro, Leo dispara. Fico na companhia de uma corredora que nos havia ultrapassado no morro do Mariscal, mas errou o caminho na estrada de Quatro Ilhas. A subida é extenuante, estou à beira da exaustão. Damos a volta e, para compensar, tem o visual do costão, com as ondas batendo tão forte quanto o coração no peito. Acelero na descida, agoniado por chegar, mas há outra subida e o fôlego some. Subo cambaleando, sob os olhares de um grupo que aproveita o sol, e desço com cautela, tentando economizar o gás para o final.

De volta à praia, e já dá para ver a concentração na outra ponta. Mas a panturrilha trava e dou uma parada. Tento correr novamente, não dá. “É câimbra, né?”, pergunta um corredor que passa por mim. “Tive que fazer o último trecho ‘rolando'”, ele me conta. Pisando com os calcanhares, sigo em frente. De cócoras e com a câmera na frente do rosto, o Fabrício, da Foco Radical, está novamente clicando o pessoal. Não quero sair na foto me arrastando…
Nessas alturas, já procuro pela Bete e a Cissa na praia. Vem-me à cabeça o verso do Cazuza, “sem pódio de chegada nem beijo de namorada”. Mas é só um instante. Logo diviso a Bete. O pessoal que chegou antes está ali e certamente aplaude. Não ouço. Daniel Meyer, que é quem organizou a prova, pergunta meu nome. “Alcides Mafra”, ainda lembro. Digo a ele que o Coveiro mandou um abraço. Ele me abraça em retribuição, diz que o André é um grande cara. A Cissa, minha filha, chega e eu me abaixo para abraçá-la. É hora de dizer uma palavra que vinha ensaiando bem antes, lá na Tainha, quando pensei em escrever este relato. Três sílabas apenas, uma ideia simples. Mas poderosa como a vontade: “Consegui”.

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Foto: Elisabete S. Silva

Estrada do Araçá: lixão com vista para o mar

O pessoal que caminha ou corre ao longo da via asfaltada que conduz ao Araçá nem precisa usar o olfato para perceber que há algo de podre naqueles três quilômetros e pouco de trajeto costeiro. Basta uma olhada simples para constatar que o percurso está se tornando um verdadeiro lixão.

Não se dá cinco passos sem que se veja no acostamento uma lata de cerveja, uma garrafa plástica ou outra porcaria largada em meio ao mato rasteiro. A quantidade de lixo é impressionante.

Um pouco mais à frente, o descaso não apenas impressiona, mas revolta. Próximo ao Araújo, rolando pela encosta, temos um lixão na pior acepção da palavra. Metros de redes de pesca, móveis velhos e outros objetos são jogados ali sem a menor cerimônia.

Umas duas curvas de morro adiante e temos o segundo “aterro sanitário”, um terreno baldio à margem da estrada que serve para que moradores do bairro descartem todo tipo de quinquilharia. O item mais absurdo se encontra dentro de uma caixa de Sedex: uma coleção de moldes de dentaduras, “encomenda” que os proprietários de uma clínica do Centro acharam bastante normal despachar naquele lugar. O endereço do “remetente” está na caixa para qualquer um ver.

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Sujeira acumulada em “aterro sanitário” à beira da estrada
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Coleção de moldes dentários jogado no “aterro sanitário” do Araçá. Será um caso de correspondência extraviada?

Acho que não é preciso nenhum exercício complicado de futurologia para imaginar o que vai acontecer com toda essa área se os abusos continuarem a ocorrer e não houver uma ação efetiva tanto para prevenir quanto para recuperar essa que é uma das belas paisagens do município.

Penso que algumas medidas são fundamentais, a começar por uma ação nas escolas do bairro visando conscientizar os menores e evitar que sigam o mau exemplo dos mais velhos. Quem sabe um mutirão de limpeza envolvendo alunos e com o suporte necessário do poder público?

Acredito também que seria interessante instalar algumas dezenas de lixeiras ao longo do trajeto, como lembrança para aqueles que viveram a última década em Marte e não ouviram ainda falar de consciência ambiental que atirar coisas pela janela do carro não demonstra apenas má educação; é um sinal de falta de civilidade e de respeito para com os outros.

Por fim, é preciso estabelecer sanções a quem pratica esse crime. Nada estimula mais o abandono dos vícios que uma bela espetada no bolso. Claro que se trata de uma medida antipática, que impacta as bases, coisa que nenhum legislador gosta de comprometer, embora seja seu dever. Porém, mesmo que não se concorde com os métodos, uma coisa é certa: não é possível que o problema continue a agravar debaixo dos narizes de todos sem que nenhuma medida seja tomada. Como está, os únicos visitantes que se comprazem da vista são mesmo os urubus…

Foi por fascínio de avião…

Na abertura do Campeonato Municipal de Futsal, nesta segunda (28), no ginásio do Colégio Tiradentes, o secretário de Esportes Osvaldo di Pietro fez um comentário em tom de brincadeira. Referindo-se ao Candôco (sempre ele), Vadão falou: “Na próxima vez, a gente vai fazer uma abertura no teto do ginásio, para o caso de passar algum avião”. E arrematou: “Algumas pessoas aqui vão entender”.

Quem já jogou no Cervejas ou se reuniu com o pessoal do time após algum jogo lá no Bar do Calinho, certamente já ouviu do Candôco (umas vinte vezes) a história do avião. Para os que não conhecem, eu vou contar.

Tudo começou no Maré Mansa. Ou melhor, antes. Era o ano de 1993 e nossa turma estava readquirindo o interesse pelo futebol. E isso de um modo um tanto canhestro: se não me engano, um sobrinho meu havia ganhado uma bola de presente e resolvemos fazer “usucapião” dela, promovendo rodas de toque ou de bobinho com cervejas na mão.

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Foto clássica do Cervejas, então Maré Mansa, em sua primeira jornada (12×0 para o adversário): da esq. p/ dir. em pé: Marlum, Chuck, Piva, Dil e Fidélis; agachados: Glauciano, Candôco, Márcio, Stefon e Luriê

Veio o verão de 1994, ano de Copa, estava saindo a segunda edição do Campeonato de Futebol de Areia (nada de Beach Soccer ainda) e resolvemos, ali na “redação” do Maré Mansa, inscrever um “anti-time” para participar: o Maré Mansa, depois Cervejas.

PERNAS DE PAU

Começamos elegendo o goleiro. Teria que ser o Candôco. Na época, ele morava em Floripa e desde moleque, quando ganhou uma camisa laranja como a do Raul Plassmann, levava jeito para a coisa. Para vestir a dez e comandar o escrete, o Mirinho, que tinha talento. O resto…

Fechamos a conta com uma cambada de pernas-de-pau sem conserto. O resultado da estreia fala por si: 12×0 para o Futebol do Porto – embora o do segundo jogo tenha sido “só” de 6×0. Mas isso tem explicação: na primeira rodada, a área de jogo foi montada próxima da água. O piso era firme e favorecia o toque de bola. Só que a maré subia e lá se ia o futebol. Então, na segunda rodada, o quadrilátero do jogo subiu para a parte distante da água, porém de areia mais fofa, que, todo mundo sabe, dificulta o jogo.

Todo esse preâmbulo para falar do avião…

Aconteceu no jogo contra o time do Besc. Ocorreu uma falta contra nossa equipe e o Candôco armou a barreira, e escolheu o canto oposto a esta para se posicionar. Zezeca estava a postos para fazer a cobrança quando uma aeronave cruzou baixo o céu, tirando completamente a atenção do nosso goleiro – fissurado em aviões, ele havia se alistado na Base Aérea em Florianópolis com a esperança de voar num deles.

O juiz apitou a falta, mas o Candôco ainda estava sob efeito da surpresa. Só voltou a si quando o pessoal do adversário saiu comemorando o gol mais fácil que jamais haviam feito e toda a torcida em volta rachava o bico de tanto rir.

O Arão eternizou o lance com o seu traço brilhante (abaixo). E aqui temos uma versão da história, escrita pelo Vadão.

candôco

Dança da faca… invisível

Todo mundo já ouviu falar em air guitar, aquela brincadeira em que o sujeito simula estar esmerilhando uma guitarra imaginária. Tem até concurso para ver quem tira o melhor “solo” do instrumento fantasma…

Agora, o que você não deve jamais ter ouvido falar é da “air knife”. Acontece que o precursor dessa engenhosa variação foi o Ari – ou Ti, para quem prefere. Pois antes de conduzir uma bem-sucedida carreira no ramo imobiliário, o Ti mostrou habilidade no trato com facas… de mentira.

Melhor explicar esse negócio. A coisa toda ocorreu lá por 1994, 1995, época em que Porto Belo vivia seu apogeu de atividades culturais destinadas ao grande público. Época também do Palco das Artes, que traria à cidade a primeira leva de nomes famosos da música.

Mas, naquele verão, era o belo palco instalado em frente ao que hoje é a cantina do Betão, competente técnico do Tatuíra FC, que fazia a alegria da moçada.

Musicalmente também foi um período memorável: naqueles dias, o que muita gente ouvia era o Álbum Preto do Metallica, o Nevermind do Nirvana, e outras coisas do gênero. E havia o reggae também…

Ti: faca de mentirinha para assustar os adversários

Sendo assim, a rapaziada comparecia aos shows que ocorriam naquele palco quase diariamente e infernizada os músicos com pedidos de Enter Sandman, Orgasmatron etc. Quando esses acediam, era um deus-nos-acuda. Mas tudo dentro de relativa normalidade.

Menos quando apareciam os rapazes da Meia Praia.

Inimigos jurados da molecada daqui, a presença deles em Porto Belo (e vice-versa) era sinônimo de encrenca. E nós estávamos lá na frente do palco, animados, quando o Ti avistou um desses caras numa noite qualquer.

Sua reação foi imediata: se dirigiu até onde o cara estava, meteu a mão direita na cintura e puxou num raio alguma coisa que saiu brandindo diante das fuças atônitas do rapaz. E como ele estivesse acompanhado de mais um ou dois, o Ari estabeleceu um perímetro em volta de si girando o braço adiante como se fosse um perigoso espadachim.

Não demorou para a coisa virar um pandemônio, todo mundo saiu correndo, gritando: Faca! Faca! A área diante do palco virou logo um deserto e, sem entender nada, perguntei:  – Ô Ari, que é deu?

– Nada, cara! Só fingi que tava com uma faca pra dar um susto naqueles caras.

De fato, funcionou. Criatividade é isso…

O cara que se recusou a proteger o Papa

A essas alturas, o papa Francisco está circulando pelas ruas do Rio de Janeiro, a repetir a rotina de outros pontífices antes dele, que no Brasil também estiveram. Um dos quais, o popular João Paulo II, tinha por hábito beijar o solo do país em visita assim que descia do avião – não sei se compartilhado pelo atual ocupante do Trono de São Pedro.

Mas o que essa atual visita me faz lembrar mesmo é que, durante a passagem de João Paulo II por Florianópolis, em outubro de 1991, um velho conhecido nosso havia sido destacado para compor o contingente responsável por garantir a segurança papal durante a visita. Ele, porém, rejeitou a honra, preferindo correr para Porto Belo.

Candôco sempre fora fanático por aviões. Por isso, decidiu servir à Aeronáutica. E não se deteve diante da recusa do médico responsável pela seleção, que por fim o orientou a arranjar uma “chapa” de pulmão de outra pessoa para substituir a sua, que apresentava uma mancha que o desqualificava para a vida em caserna.

Pois bem, Candôco serviu durante um ano na Base Aérea de Florianópolis. E era de se esperar que a rígida rotina militar incutisse alguma disciplina no rapaz. Aconteceu justamente o contrário.

Quando foi designado a servir no cassino dos oficiais, Candôco se especializou em aplicar pequenos golpes: tomava cervejas à vontade e as debitava na conta dos tenentes aviadores que frequentavam o local. E tudo ia bem até que ele “engordou” a dívida de um cliente que sequer bebia. Quando o homem, desconfiado, o questionou a respeito, Candôco saiu-se bem:

– Foram os seus amigos que mandaram colocar na conta do senhor. Como eles são meus superiores, não pude questionar!

E foi com igual desfaçatez que o Candôco, que havia sido designado junto com todo o pessoal da base para ajudar a manter a segurança durante a visita do Papa, resolveu dar o cano. Pegou o primeiro ônibus que pôde e se mandou para Porto Belo, para tomar umas com os amigos, naquele final de semana em que o Estado inteiro se enlevava com a presença por aqui de João Paulo II.

Candôco, todos sabem, não é exatamente um homem de fé…

Lu, o camisa 9

Entre todas as coisas legais do período, o verão nos traz mais uma edição do campeonato municipal de futebol de areia. É hora de quebrar a cabeça para montar o Cervejas – que, aliás, está se aproximando do seu vigésimo aniversário.

E é tempo de relembrar lances memoráveis vividos por esse time querido. Hoje, a lembrança que me fez escrever este texto foi a de um jogaço do campeonato de 1997. Primeiro ano em que o Luciano Kruscinscky jogou com a gente.

Em boa companhia: Lu (o careca), com o Xande em primeiro plano, Candôco atrás deste, Dida à esq., e no fundo Cezinha, Alex e Maninho

Em boa companhia: Lu (o careca), com o Xande em primeiro plano, Candôco atrás deste, Dida à esq., e no fundo Cezinha, Alex e Maninho (foto: Arquivo Cervejas)

Era o primeiro jogo eliminatório do campeonato. Contra o Tubarões. O time era uma reunião dos craques da praia (alguns diriam “panelinha”) e o Cervejas era… bem, o Cervejas era o Cervejas. Havia feito estrago no campeonato, é verdade, mas chegava absolutamente azarão ao jogo.

Logo no comecinho, o Lu sobe e acerta uma cabeçada fulminante. Golaço! Na comemoração, corre feito um possesso, gritando palavrões para a torcida em delírio. E nós todos absolutamente pasmos – não com os palavrões, mas com o gol.

Logo na sequência, o Lu vira sobre o zagueiro e acerta um míssil. A bola deve ter fumegado os dedos do Nestor, o goleiro adversário. Dois a zero e êxtase absoluto na praia!

Mas como segurar um placar assim contra uma “seleção”? Logo no começo da segunda etapa, na saída de bola, Luiz Fernando (creio que foi ele) acerta um chutaço e diminui (o Candôco tem uma teoria de que eu me desviei da bola e matei sua chance de defesa, mas a explicação é completamente absurda, melhor deixar pra lá).

Não me recordo como foi o gol de empate (se alguém souber, me ajude), mas o jogo foi uma batalha até o final. Tubarões jogava pela igualdade e seguiu adiante, mas com o orgulho bastante avariado, não tenho dúvida.

O resultado do jogo clássico, no traço do próprio Lu, com uma participação do Arão

O resultado do jogo clássico, no traço do próprio Lu, com uma participação do Arão

Quando o Lu decidiu deixar o time (queria ganhar títulos, afinal), eu e o Candôco, dirigentes do time e donos do Pirão d’água, fizemos uma “reunião de negócios” com ele para dissuadi-lo da ideia. Acabou que ficamos até de madrugada comendo pizza, tomando cerveja e falando bobagens. E na noite seguinte haveria jogo, contra a Pioneira, acho – nenhum dos três conseguiu jogar nada e o Cervejas tomou uma surra.

Mas o Lu era uma figura. Muito tempo depois, ele virou uma espécie de personagem de Joseph Conrad: mergulhou no “coração das trevas” e ganhou o mundo, feito um pirata, ora aparecendo, ora sumindo, sempre na boemia. Há quem acredite que perdeu o juízo. Não que juízo fosse o forte dele, mas como jogava bola!

A última vez que joguei com ele, foi numa pelada de futsal, faz alguns anos. Continuava driblador e absolutamente fominha, como é característico de quase todo bom camisa 9.

Assim como o Lu, tanta gente já vestiu a camisa “encarnada” do Cervejas. Todos, aposto, têm uma lembrança boa desses tempos. Outros chegaram, bons amigos ficaram e o time permanece, engrossando sua enciclopédia de “causos”. Se você passar pelo bar do Calinho em noite de jogo, vai encontrar a turma por ali. Como sempre, comemorando…

O presépio do seu Izaltino

Seu Izaltino (creio que seja assim mesmo, com “z”) é um senhor de uns oitenta anos de idade que mora sozinho aqui na vizinhança. Sozinho em termos: com ele vivem uma dezena de gatos, alguns cachorros e uns dois coelhos.

De temperamento quieto, seu Izaltino só se exalta nas vezes em que toma uns aperitivos a mais. Ou nos domingos pela manhã, quando costuma acordar a vizinhança com o rádio no volume máximo, sintonizado em modas de viola.

Se bem que isso é passado. Faz tempo que ele tem cultivado um silêncio de recluso. O que está evidente no seu Izaltino é a saúde debilitada, basta olhar seus pés inchados, de um tom arroxeado característico da má-circulação, e o andar vacilante.

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Animaizinhos compõem o presépio de seu Izaltino

O que não o impede de ser ativo. Nem de cumprir uma tradição pessoal: todo ano, nesta época, seu Izaltino monta um pequeno presépio em frente de casa.

Este ano houve uma ligeira mudança, porém. Ao invés das figuras tradicionais de Maria, José e do Menino-Deus que esse senhor confeccionava, resolveu adquirir alguns animaizinhos de plástico no “R$ 1,99” ali do centro e com eles decorou a sua árvore de Natal.

Uma vez perguntamos a ele dessa sua mania de construir presépios. De baixo do bigode branco do seu Izaltino abriu-se um sorriso infantil que explicou mais do que as palavras. Creio que isso seja o que muitos chamam por aí de “espírito de Natal”…

Feliz Natal, seu Izaltino. E Feliz Natal a todos.

Anarquia no Tiradentes

Tem um filme de 1979 que virou “cult” chamado Rock’n’roll High School, no qual os Ramones aparecem tanto compondo a trilha sonora quanto atuando, como eles mesmo, no filme, que ao final mostra os alunos detonando, literalmente, a Vince Lombardi High School. Rebeldia absoluta.

Episódio de rebeldia ocorreu certa vez no Tiradentes. Curioso que foi num momento em que os alunos, pais e professores experimentaram um raro momento de exercício democrático. Foi quando escolhemos, pelo voto, o nosso diretor. E o nome que escolhemos foi o do professor Osvaldo Eduardo di Pietro, o Vadão.

Porém, as coisas não caminharam bem para ele na nova função. Logo, estávamos suspeitando de que havia algum conluio secreto para atrapalhar a vida do Vadão. Alguns de nós, então, resolvemos protestar. E o recurso que usamos foi a anarquia.

Não demorou para haver bombinhas estourando nas lixeiras do colégio. Numa tentativa mais grave de terrorismo, tentamos mandar pelos ares a privada do banheiro dos meninos.

Osvaldo Di Pietro, o Vadão: o terrorismo, como era de se esperar, não ajudou em nada (foto: Isadora Manerich)

O Vadão, obviamente, não ficou contente com essa bizarra manifestação de apoio. Tampouco isso ajudou na sua causa, antes pelo contrário. Fato foi que, ao final, o Vadão deixou precocemente o cargo.

Lamentamos porque o Vadão a gente conhecia, e respeitava, desde a época em que ele tinha barba. Sim, a barba era uma marca registrada, assim como o bigodão que ele ostenta até hoje. Lembro-me do susto quando o vimos pela primeira vez sem ela – parece que sacrificou a barba por uma aposta perdida.

O Vadão também estava lá num período mágico na infância da minha turma, quando reuniu todo mundo num time de futebol. Nos finais de tarde, a rapaziada se juntava no Tiradentes para aprender a jogar bola (não aprendi, infelizmente). A jornada rendeu uma inesquecível partida lá no Matadouro, em Itajaí, quando promovemos um gato: naquele jogo, o Ednei virou o Isaías.

[Bem depois disso o Vadão foi treinador do Cervejas, mas nem ele podia fazer aquele time, que tem compulsão por perder, ganhar um título… Também não o mandamos embora, foram as circunstâncias que afastaram a ambos.]

Mais tarde, quando decidimos fundar o Pirão d’água, recorremos ao Vadão para nos ajudar, pois ele era jornalista formado e podia ser responsável pelos desatinos que cometíamos nos primeiros meses do jornal. E ele, generosamente, aceitou. Mas aí havia eleições à frente, o Vadão estava no páreo, e tivemos que declinar da preciosa ajuda. Mas ele não deixou de colaborar com o jornal, assumindo a “editoria” de esportes durante quase todo o tempo em que o jornal existiu.

Depois o Vadão seguiu procurando colaborar com a causa pública, como vereador e também como secretário de Esportes. Deve ter visto quanto uma coisa e outra podem ser espinhosas. Largou disso, como também largou das aulas. Hoje, vive de alugar imóveis e de fazer a crônica da memória esportiva de Porto Belo. Sem abrir mão do seu papel de cidadão.

Miltinho

A última pessoa que viu o Miltinho foi o Evandro. Assim disseram. No Morro de Bombas, com as mãos nos bolsos. Mas deixem eu antes falar do Miltinho…

Minha lembrança mais nítida é dele sentado à frente da carteira de professor lá no Tiradentes. Uma blusa (suéter?) verde escuro com o jacarezinho da Lacoste bordado no lado esquerdo, as mãos espalmadas no tampo da carteira parecendo desproporcionais.

Milton foi um amigo da minha pequena turma de contabilidade, além de professor. Falava de filmes (mencionou um do Charles Bronson o qual nunca vi – Alguém atrás da porta) e soube serenar nossa perplexidade naquele ano em que o Collor havia ganhado a eleição. Apreciava falar de política e debatia com a gente sobre o futuro do país com otimismo.

A notícia de que havia escolhido ir-se antes do tempo foi um choque. Lembro bem daquela manhã, quando as notícias chegavam à rodoviária de Porto Belo, onde eu trabalhava, dando conta (e exagerando) dos detalhes de sua morte.

Foi naquela noite ou na seguinte que o Evandro perdeu o ônibus que levava o pessoal do Tiradentes que morava para lá do Morro de Bombas. A solução foi atravessar o morro a pé, sozinho e de noite. E foi o que ele fez, até que, no meio do caminho, algo iluminou um vulto que estava parado à frente – o farol de um carro em descida, talvez. Evandro viu então quem estava ali e desceu todo o caminho que fizera em disparada. Só parou, dizem, quando alcançou o Maria Mariá, onde alguns colegas ainda deviam estar jogando sinuca.

Sei que não faz o menor sentido, mas sempre que lembro do Milton essa história vem junto. Uma história que ele mesmo talvez achasse graça, não fosse ele próprio o protagonista. E tem outra:

No outro dia, alguns rapazes combinavam uma caçada no morro. Decidiram sair na madrugada seguinte, pelas cinco horas, mais ou menos:

– Então tá certo. Essa noite eu durmo na casa do Murilo e amanhã tu vai lá e encontra a gente. – No que o Vilsinho replicou: – Nada disso! Depois que viram o Miltinho no morro, com a mão no bolso?! Vocês é que vão lá me buscar!

Disso, sim, ele daria boas risadas.

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