O pessoal da minha geração (e das anteriores) deve ter, como eu, um sentimento de nostalgia com relação à praia do centro de Porto Belo.
Um par de décadas atrás, o trecho de areia entre o trapiche dos pescadores e aquele amontoado de pedras onde havia o marco da Marinha era o lugar preferido para o namoro dos casais.
Caminhar pela praia era o programa romântico daqueles dias (melhor, noites), assim como era comum o pessoal dar voltas por lá, se reunir. Quase um caminho obrigatório antes das saídas de fim de semana.
Lembro disso porque, no meio da semana, percorremos a praia do Centro eu e o Cezinha, nosso grande amigo baixista, em uma corrida noturna (corridas têm se tornado um exercício frequente e bem-vindo).
Constatamos como a praia está agradável, bem iluminada, o píer transformou o trapiche num local charmoso, atrativo. Porém, acho que ninguém em bom juízo se arriscaria a perambular pelo local à noite.
Sim, encontramos gente caminhando e uns garotos sentados numa mureta lá próximo do trapiche das escunas. Mas, fora os garotos, eram pessoas que talvez você preferisse evitar se estivesse sozinho…
Creio que a situação mudaria bastante se ocorresse por aqui o que acontece em Bombas, por exemplo, onde a praia é um espaço familiar, com gente praticando caminhadas, corridas, jogando aquele jogo com discos de madeira que lembra a bocha (se alguém souber o nome, por favor, me avise), entre outras atividades.
Será que o mesmo não poderia acontecer por aqui? Claro, se o Casarão estivesse operando durante a semana (ouvi boatos de que pensam em derrubá-lo, o que seria um crime – aliás, não seria uma ideia nova, já na época do Pirão enfrentamos essa possibilidade, mas é assunto para outro post) seria mais interessante circular por lá, mas creio que poderíamos, muito bem, aproveitar melhor esse espaço público, agora revitalizado, especialmente quando temos tão poucos locais de lazer.
Talvez pudesse haver um pouco mais de segurança e a praia do Centro voltasse a ser o ponto de encontro aprazível que um dia foi. Por que não, então, invadirmos a nossa própria praia?
No último post, conversávamos sobre música. Especificamente sobre o pessoal que fez ou faz a cena musical da cidade. Coincidência ou não, boa parte da turma que citei esteve reunida no Vila Nova para uma celebração surpresa pelo aniversário do Alex, na casa deste, na última terça-feira.
Coveiro, Cezinha, Jefinho, Maninho, o baterista de Itajaí Dunga… não faltou músico na festa (ninguém pensou em uma jam, infelizmente). Outros amigos do guitarrista apareceram e a noite seguiu descontraída.
Já escrevi aqui antes sobre o Alex. Mas gostaria de tirar da gaveta uma entrevista que fiz com ele em 2002, para a Univali. Tinha pensado em usá-la naquela primeira oportunidade, mas o texto foi ficando de lado. Trata-se de um perfil que fiz dele em novembro de 2002, para a Univali.
Perfis são uma das coisas mais legais que se pode fazer em jornalismo. Mas, embora escritos dentro das “técnicas da reportagem”, nem sempre se pode ter certeza de que o retrato ficou fiel ao retratado ou se apenas traduz a forma como a gente vê a pessoa. De qualquer modo, vale arriscar. Segue abaixo o texto:
Não seria muito exagero dizer que, no Brasil, existe um músico ou banda em cada esquina. Fica fácil perceber esta proporção, basta circular por qualquer canto, em qualquer lugar. Na noite, em bares ou boates, em pequenas reuniões de amigos, lá está o violão, ora tocado com talento, ora com mero esforço. Nas garagens os acordes distorcidos perturbam os vizinhos. A caminho do trabalho, alguém cantarola uma melodia.
A música faz parte da vida das pessoas. Cada canção já composta desperta algum sentimento no coração de alguém. Alguns, entretanto, sentem um apelo maior: já não lhes basta apenas ouvir as músicas preferidas, é necessário tocá-las, propor acordes novos, impor um estilo particular às composições, criar as próprias melodias, as próprias mensagens – criar um jeito particular de fazer música. Este impulso, em geral, traz consigo um sonho: o de fazer sucesso e viver da música.
Alex Sancho possui este sonho. Aos 28 anos, contabiliza dez como guitarrista. Atualmente toca na banda Uniclãs, de Porto Belo, no litoral norte do Estado. Prestes a ter nas mãos o primeiro registro em CD oficial da banda, Alex acredita que sua hora chegou.
A Uniclãs é formada por um grupo de amigos que em 2001 reuniu-se para desenvolver músicas próprias, apoiadas nas letras criadas por Nando Kruscinscky, vocalista da banda. O resultado foi tão bom que no mesmo ano o grupo já tocava em bares da cidade. A identificação dos jovens da região com o novo som foi imediata.
“A gente se chocou, a galera gostando e dando apoio. É até absurdo, porque tem aquela de que santo de casa não faz milagres”, comenta Alex.
No ano seguinte a banda lançou um CD demo, realizou um grande show e vendeu as mil cópias que havia produzido, chamando a atenção do promotor de eventos Juracy de Almeida, da Tâmisa Eventos. No início de novembro, começou a grande guinada.
Por conta de Juracy, a Uniclãs entrou no estúdio Schema 336, em São Paulo, para gravar seu primeiro trabalho profissional, a ser concluído no início de 2003.
A experiência em São Paulo ainda emociona Alex: “Foi um salto, tu ver um músico como o Oswaldinho do Acordeon, tocando ali do teu lado e gostando do teu som, é como um sonho”, empolga-se.
Além de Oswaldinho, outros músicos foram convocados para participar do trabalho do Uniclãs, cujo estilo é uma mistura vários ritmos, do baião ao reggae, com os arranjos marcantes da guitarra de Alex, o baixo de Cesinha, os violões e guitarra de André, a bateria de Guto e o vocal de Nando.
A boa fase da banda é, para Alex, o grande momento de uma trajetória de dificuldades. Canhoto, começou aos 15 anos a tocar violão, invertendo as cordas de um Tonante que comprou com seu primeiro salário como balconista em um bar da cidade. O instrumento ele mantém até hoje, ao lado de uma Washburn, uma Fernandes e uma Guilber, todas guitarras feitas para canhotos.
No começo, a idéia era tirar músicas do Legião Urbana, Titãs e Nenhum de Nós e fazer sucesso nas rodas de amigos e com as meninas. O temperamento tímido, entretanto, o levou ao isolamento. As lições de violão e guitarra passaram a preencher o vazio social na vida de Alex, que varava noites tocando no seu quarto. Tanta dedicação sedimentou uma técnica apurada e o músico passou a ser reconhecido na cidade como um grande talento. Ele, porém, demonstra modéstia: “Me considero, para o padrão da banda, um bom músico. Mas sei que preciso evoluir, tem sempre que buscar uma coisa nova”.
Assim como todos na Uniclãs, Alex não mantém outro emprego. Vive “cheio de altos e baixos”, tocando com a banda ou dando algumas aulas de violão e guitarra. “No inverno é mais complicado, tem mês que toca, tem mês que safa”, conta. Há seis meses conheceu Leydiane Reis Amaral, 20 anos, por quem se apaixonou e hoje vivem juntos, à espera do primeiro filho. “Agora aumenta a responsabilidade”, reconhece.
Ao mesmo tempo, com o casamento veio o apoio e a tranqüilidade para acreditar no sonho: “No começo pensei assim: ‘Se demorar a acontecer, ou não acontecer, vou ter que tomar uma decisão radical’. Mas pintou um lance maior na banda e é hora de apostar”.
Refletindo sobre sua trajetória e a importância da música em sua vida, Alex não vacila em concluir: “Foi fundamental, era o que mais me dava ânimo, em algumas épocas era no que eu mais me apoiava”. Hoje, o guitarrista visualiza a possibilidade de ouvir a Uniclãs tocando nas rádios, subindo em palcos do eixo Rio-São Paulo. Paralelamente, acalenta o sonho de gravar um trabalho instrumental, marcado pelas suas influências de jazz, rock e MPB.
O mais importante, avalia, é fazer daquilo que mais ama um meio de vida: “Agora se abriu um horizonte novo, a oportunidade de conhecer um monte de gente que só ouvia no CD e sendo respeitado por eles. Para o futuro espero que a gente possa estar ainda na música, evoluindo nela e vivendo com dignidade”, conclui.
Uma boa conversa com o André em algum momento vai descambar em música. Boa-praça como poucos, o Coveiro tem me dado o privilégio de acompanhá-lo em suas corridas entre Porto Belo e Bombinhas. E, por sorte, me tem sobrado fôlego para conversarmos em meio ao trote…
Falar de música com o André também desemboca na Uniclãs, banda que volta e meia ensaia um retorno mas esbarra quase sempre na instabilidade do seu frontman, o Nando. Acho que falo com acerto quando digo que a Uniclãs foi o mais bem-sucedido projeto musical de Porto Belo, com CD gravado, shows importantes e fãs fiéis até hoje.
Mais interessante foi saber pelo André que a Nosferatu deu uma pequena parcela de contribuição na caminhada da Uniclãs. Nosferatu foi um projeto de curta duração, creio que pouco mais de um ano, que nasceu lá pelo final de 1994. Não tínhamos composições próprias, mas fizemos uns bons shows no Palco das Artes e alguns outros divertidos no Job’s – o Job sempre tinha sua casa, lá no Vila Nova, aberta para nossas apresentações – sem contar um que terminou em pancadaria lá em Itajaí…
Realmente, nesses shows em Porto Belo a gente via o pessoal que depois faria a Uniclãs e também formaria a atual cena musical da cidade: lembro do Nando subindo no palco na primeira noite que tocamos no Palco das Artes, para terror do seu futuro empresário Juracy, do Carlinhos atento ao meu vacilante contrabaixo no Job’s, sem falar do Alex, na ocasião a guitarra canhota da própria Nosferatu (que se completava com o André Tulipano e o Henry).
CENA QUENTE
Nossa banda talvez ficasse mesmo num meio-caminho entre as primeiras experiências musicais na cidade de que eu me lembre e a Uniclãs. De primeiras experiências me refiro, por exemplo, à Distrito, banda do pessoal de Bombas, Márcio, Luisão e Ita, que tocava no Casarão em frente ao Trapiche dos Pescadores (foi lá que eu os vi, pelo menos), muito antes que houvesse aquela sucessão de bares no centro, primeiro Cais entre Nós, depois Bodega do Porto, Bucaneiro, Caída da Lua e, enfim, Canoa Quebrada, os quais fizeram o nome de gente como Serginho Almeida (outra importante referência musical da cidade), Seco, a Estatura Mediana de Itajaí e outros.
Numa garagem quase em frente ao Caída da Lua, aliás, saiu uma experiência musical que, ao menos para mim, serviu de referência: ali ensaiavam o Vilsinho, Juliano e Testa, com o propósito de formarem uma banda com influências no punk rock. Soube que tocaram uma vez no Submarino Amarelo, e só.
Disso tudo surgiu a Nosferatu, depois que o André saiu brigado de uma banda que havia em Itapema decidido a formar a sua própria banda de rock. O período era marcado ainda pelo sucesso do Álbum Preto do Metallica e pelos ecos do grunge encabeçado pelo Nirvana e seuNevermind – ambos os álbuns lançados em 1991. Ensaiamos no mais absoluto improviso na casa do Alex (que antes tocava com o Bicudo, Christian e Jefinho), até encontrarmos o Henry, baterista de Itajaí, que nos abrigou em sua bela casa no bairro São Vicente.
Nosso primeiro show ocorreu dia 14 de janeiro de 1995, no ginásio Gabriel Colares, em Itajaí. Tocávamos somente covers, não entramos no estágio das composições próprias. No verão seguinte, às voltas cada um com suas próprias preocupações, deixamos o projeto esfriar. O André depois formaria a Steel Warrior, em Itajaí, banda que obteve contrato com gravadora e alguns shows na Europa. O Alex seguiu tocando com o pessoal daqui e se juntou à Al-Jihad do Nando e do Maninho, o que viria depois a ser a Uniclãs.
Guardadas as proporções, sinto um pesar semelhante ao do pessoal da Uniclãs pelo fim prematuro da Nosferatu. Daqueles tempos, herdei uma obsessão pelo contrabaixo que ainda não se reverteu em domínio desse instrumento. Ficou também o gosto pelas mesmas músicas. Apesar de tudo, acho que posso compartilhar com o pessoal da Uniclãs e de outras bandas que pipocaram (pipocam) na região, o sentimento de que valeu a pena. Enquanto durou, foi excelente.
Faz um tempo, antes ainda do verão, esperando por uma carona para Balneário numa segunda-feira pela manhã, me dei conta de algo que os mais observadores devem ter reparado muito antes: como anda confuso o trânsito em Porto Belo! Caótico talvez seja o termo mais correto…
O que antes era exclusividade dos meses de verão parece estar incorporado à nossa rotina, ou seja, trânsito lento no centro, especialmente nas chamadas horas de rush. Na manhã em que tive a minha “revelação”, fiquei surpreso com a quantidade de veículos transitando pela Irineu José Moreira logo pela manhã: ônibus de estudantes, caminhões e mais carros de passeio, numa confusão de ir e vir, estacionar, manobrar para dar passagem ao outro etc.
A razão principal para isso, creio, está na atual facilidade para se adquirir um carro ou moto. Basta lembrar que, há uma década e pouco, eram raros os meus amigos que possuíam veículos. Hoje, difícil é ver uma família que não tenha pelo menos um na garagem. Motocicleta, então, quase todo rapaz ou moça hoje em dia dirige uma.
Trânsito complicado é quase sempre problema para quem, justamente, não dirige. O pedestre precisa estar atento e seria muito bom que, de parte a parte, passantes e motoristas, usassem com mais frequência e observassem as faixas de pedestre.
Por outro lado, existe a dificuldade com os passeios. Raras são as calçadas que possuem rampa, circunstância que agora, pilotando um carrinho de bebê, verifico com mais precisão, muitas são esburacadas e muitas mais simplesmente, inexistem. E há o problema da superpopulação de postes na avenida: como comparou muito bem dona Lúcia Japp, a principal via parece um “paliteiro”.
Ocorre que, com a cada vez mais comum presença dos navios de cruzeiro em nossa orla, a população pedestre na cidade aumenta bastante em determinados dias. Contingente que, em boa maioria, é formado por idosos.
Se por um lado há mais carros na pista, por outro há mais gente circulando nas calçadas. E estas, definitivamente, não comportam nem atendem adequadamente ao público. Creio que está aí um ótimo tema para os postulantes ao próximo mandato municipal terem na agenda.
Amanhã será a Sexta-feira da Paixão e permanece a calmaria das últimas semanas. Para quem, nos últimos anos, acompanhou o auge e a agonia da farra do boi, quando esta virou caso de polícia, parece que temos, como diria Nelson Rodrigues, “um silêncio de mil catedrais”. Claro, tudo pode acontecer de hoje até domingo.
No entanto, parece realmente que a farra está sepultada. Houve casos isolados, repreendidos com brutalidade até. As próximas gerações, muito provavelmente, saberão dessa tradição só de ouvir falar.
Acho que já comentei por aqui, mas lembro com saudade do tempo em que, ainda garotos, acompanhávamos a farra por trás das janelas gradeadas lá da casa da minha mãe. Empoleirados no sofá, eu e os irmãos lutávamos contra o sono, espiando a rua vazia e escura, ouvindo o rumor da conversa dos adultos na esquina e os ecos distantes distantes do pessoal que “brincava” com o boi.
Se tivéssemos sorte, o animal passaria correndo feito uma assombração defronte nossos estarrecidos olhos. Talvez víssemos mesmo o espetáculo do boi lançando adiante algum farrista mais ousado.
Mais tarde, já maiores, junto com os outros garotos, pudemos “correr atrás do boi”. Devidamente paramentados (bermuda velha por cima de uma calça de moletom, outro moletom amarrado atravessado no peito e kichutes), ficávamos pendurados nas árvores, esperando o grande momento da “soltada”, lá onde hoje está o mercado do Romilton. Foi quando surgiram as primeiras lendas, com a do Jackson que, dizem, subiu num espinhento pé de “mamica-de-porca para escapar do boi. A árvore, testemunha silenciosa da veracidade ou não do “causo”, não existe mais – seu Zé Antônio a derrubou.
Depois vieram os mangueirões, as carreiras pela cidade, as semanas inteiras de soltadas que paravam as aulas no Tiradentes, caminhões boiadeiros em comboio pela cidade. Mais tarde, com a proibição, tudo foi se acabando.
Abandonei cedo a farra, primeiro por covardia, depois por desgostar da tradição. Não há como negar, é uma prática violenta. Depois de adulto, ainda participei de algumas, pois toda a turma queria ir, não havia jeito. O encanto, porém, já havia passado.
Nos tempos de Pirão, cobrimos algumas vezes a farra do boi. A proibição era assunto recente e a revolta dos farristas contra a imprensa, em especial, era enorme. O Candôco corria um especial perigo, pois, como fotógrafo, era a parte mais visível do “inimigo”. Uma foto memorável daquele tempo (preciso achá-la nos arquivos do jornal) foi tirada em Canto Grande. Um caminhão passava na avenida com um bando de farristas em cima. O boi não se via.
O Candôco subiu num muro e conseguiu fotografar o animal deitado amarrado no fundo da carroceria, congelando na imagem também as expressões de raiva e ameaça dos farristas. O jeito foi sair de lá rapidinho.
No Pirão, creio que exercíamos uma espécie de autocensura com relação à farra. Lembro de um editorial que escrevemos, no qual defendíamos a tradição, mas dávamos razão à proibição – ambiguidade maior, impossível. Ou seja, saíamos pela tangente, embora nem, eu nem o Luiz fôssemos a favor da “brincadeira”. No fundo, é algo parecido com o que ocorreu até há bem pouco, quando políticos locais defendiam e até incentivavam a prática, pois não queriam ficar mal com seus eleitores.
Faz um tempo, ao voltar para casa, encontrei o Lipa. Como sempre, em sua bicicleta. Na conversa, ele pediu: – Faz pra mim uma estampa do “Diabo Loiro”. Respondi que sim e ele avisou que no domingo seguinte estaria ali na minha casa (éramos quase vizinhos) para o trabalho. Mas jamais apareceu.
Quem conheceu o Lipa vai se lembrar do sujeito afável, de uma magreza de faquir, barbado, quase sempre pilotando tranquilamente uma “magrela” ou pintando alguma parede. “Diabo Loiro” era como ele gostava de se intitular, em alusão aos seus bons tempos como goleiro no futebol de areia de Porto Belo.
Curioso era vê-lo, nesses últimos tempos, passeando pela vizinhança com o Tonico pela coleira, este convalescendo de um atropelamento recente. Difícil saber qual dos dois inspirava maior comiseração.
Certa vez, o Lipa pediu que o internassem, me contaram, depois que havia torrado todo o salário de um mês numa única noite. Em outra ocasião, foi recolhido desacordado na beira de uma estrada, abandonado pelos colegas de cachimbo.
Faz alguns dias, chegou em casa, trancou-se no quarto e se bateu com seus demônios durante toda a noite. O resultado foi desastroso para o “Diabo Loiro”: encontraram-no devastado e o retiraram do quarto na madrugada como um cristo recolhido do calvário. Disseram que os socorristas, ao vê-lo, perguntaram se havia tomado uma surra.
Lipa adormeceu no sono do coma para não mais acordar. No velório, teve a companhia da Nadir, outra que andou por trilhas tortas. Foram enterrados nesta linda manhã de outono.
Uma vez iniciei um texto sobre seu Zeli. Chamei-o “Um velho rabugento”. Mas não passei da introdução
Ontem eu soube pela Rafa (que passou a informação com tristeza) que o velho casarão do Seu Zeli já não existe mais. No domingo havíamos passado em frente ao antigo armazém de secos e molhados e observado que as janelas e paredes internas haviam sido removidas. Planejei voltar lá e fotografar o prédio antes que sumisse, mas perdi a oportunidade.
Tal como aconteceu com o casarão da esquina da Alda Tavares com Leopoldo José Guerreiro, perdi muitas oportunidades de conversar com seu Zeli, que morreu faz muitos meses. Há bastante tempo, a lanchonete do Calinho ficava onde até há pouco estava o Porto Vip, e presenciei uma conversa entre Calinho e o Tonho, filho do seu Zeli. Tonho contou uma série de histórias divertidas sobre seu pai, e também as dificuldades dos primeiros tempos da doença deste.
Erro grosseiro na capa roubou o gostinho da vitória
Após uma segunda edição bastante protocolar, cuja matéria de maior interesse estava no pé da página 7 (a primeira pesquisa eleitoral do jornal, realizada no bairro Araçá, tema que ainda daria muita dor de cabeça), em agosto de 1996 sairia, na edição de número 3, a primeira grande reportagem do Pirão d´água. Sua primeira cruzada, digamos assim.
A pauta estava bem ali na nossa frente, na baía de Porto Belo. Mas não lembro como chegou à nossa redação. O fato é que os barcos que faziam a pesca de atum viviam cercando isca viva nas proximidades da ilha João da Cunha, algo que contrariava a legislação ambiental. Os pescadores artesanais estavam furiosos, mas impotentes.
Resolvemos averiguar e, como se diz pomposamente por aí, “num esforço de reportagem” levantamos informações. Fomos ao Araçá tentar conseguir uma boa imagem dos atuneiros em ação. Lá, encontramos Teté, candidato a prefeito, que resolveu fazer uma média e ligar para o Ibama, denunciando o caso. Ninguém atendeu a sua chamada.
Mas conseguimos algumas imagens. Sem uma lente com zoom suficientemente amplo, as fotos não saíram lá aquelas coisas, e ficaram piores ainda na impressão do jornal (olhando agora, parecem essas fotos que se vê de supostos ovnis).
Ouvimos pescadores, políticos locais, entrevistamos o presidente da Colônia de Pescadores (que ingenuamente considerei uma espécie de Chico Mendes portobelense), obtivemos alguns números. “Nos últimos anos em Porto Belo nós temos assistido em silêncio à perpetuação de uma verdadeira afronta”, esbravejamos no editorial. Uma verdadeira bomba.
Faltou praticar melhor o jornalismo e ouvir o outro lado. Sequer suspeitávamos que muitos pais de família da região trabalhavam nos convés daqueles navios, ou que houvesse outros aspectos a considerar.
Foi também a primeira vez que passamos uma noite inteira trabalhando no jornal. Suamos para deixar tudo pronto, revisado, impecável. Às 7 da manhã do dia seguinte, seguíamos para casa como um bando de zumbis, esfalfados (acho que o Candôco ainda teria que levar o jornal até a gráfica que o rodaria, em Florianópolis).
Porém, nos sentíamos realizados. Estávamos cumprindo com nosso papel, abraçando uma causa importante, praticando jornalismo de verdade. Éramos os paladinos da justiça da vez. Só que, assim que chegaram os fardos de jornal, na primeira olhada, o Candôco deitou o olho sobre um erro grotesco no título da legenda, algo que, embora tívessemos visto e revisto à exaustão, acabou passando batido. Apenas isso bastou liquidar nosso sentimento de vitória…
O Cesar se tornou uma espécie de mito lá no ginásio da Escola Básica “Tiradentes”, numa vez em que a temida professora Vilma o mandou ler a redação que ele deveria ter feito como lição de casa. César não havia escrito absolutamente nada. Porém, se levantou resoluto, pegou o caderno e se pôs a ler uma história fantástica que inventou na hora. Surpresa com a inventividade do moleque, dona Vilma quis ver a redação com os próprios olhos. Qual não foi sua admiração quando constatou que não havia nada ali no caderno, a folha estava em branco? Ela mesma tratou de contar o fato na sala dos professores, e a história correu o colégio.
Cesar era um cara loiro, olhos azuis, muito claro, uma falha no lábio superior devido a um acidente na infância, cabelo no estilo “mullet”. Costumava usar um colete e um bracelete do tipo “metaleiro” – sem o ser – e tinha por apelido “Piô”. Acho que foi o primeiro escritor de realismo fantástico que conheci. Escrevia histórias malucas cujo personagem principal era sempre o Bilu, seu cachorro vira-latas, cujos prodígios – inventados por ele – incluíam derrubar um poste com um golpe de calda.
Piô tinha um senso de humor invencível e era absolutamente debochado. Podia gastar horas atazanando algum colega, como na vez em que chateou o Bruno na saída do colégio, enquanto este, roxo de raiva, o repreendia com o prosaico xingamento: “Mentecapto!”
Bem mais tarde, Piô assumiu a condição de Lázaro. Estávamos na escola, quando o Lipe, o professor de física e outras ciências, contou que o Cesar havia morrido. Comoção e confusão entre os amigos. Descobrimos que ele sofria de diabetes, sem o saber, e teve uma crise decorrente disso. Diagnosticado no hospital que o atendeu como estando embriagado, recebeu uma injeção de glicose, o que precipitou o coma.
Cesar não morreu, mas nunca mais foi o mesmo. Ao mesmo tempo em que descobriu que teria que conviver com uma doença que lhe impunha limites, descobriu que ia ser pai. E os filhos foram se sucedendo. Cesar se tornou amargo, fatalista, tropeçou entre idas e vindas de Curitiba, onde nasceu, em busca de um norte. Bebia, algo que, para um diabético, era absolutamente pouco recomendável.
A última vez que o vi foi quando o Arão, que se tornou muito próximo a ele durante seu longo calvário, me convidou para o levarmos até Balneário, para uma sessão de hemodiálise. Ele mal enxergava, estava amarelo, o rosto inchado. Não suportava mais a diálise, e me parece que estava com medo.
Cesar morreu um tempo depois disso. Quatro ou cinco amigos estiveram no velório, num centro comunitário do bairro Jardim Dourado. Muita gente talvez tivesse acreditado que ele já houvesse morrido mesmo naquela primeira vez, ou nas outras em que o deram por finado. Não tenho ideia de como ele, se pusesse a si mesmo como personagem de suas redações, escreveria sua própria história, se com o colorido aventuresco dos primeiros tempos ou o cinza carregado de amargura dos últimos dias. Gosto de pensar que seria algo um pouco mais divertido…
Ah sim, falávamos da Procissão das almas e dos textos que estão na gaveta, à espera de uma improvável segunda edição do Contam os Antigos. O texto abaixo escrevi como introdução a um capítulo que trata dessa curiosa crença que, aliás, não é exclusividade nossa, trata-se de uma herança que nos chegou de além-mar. Bem, importa que fiz na ocasião uma incursão até o cemitério de Bombinhas na hora propícia (à meia-noite), num esforço de jornalismo “gonzo” para descobrir alguma igualmente improvável manifestação do Além. Começa assim…
“Não é todo mundo que vê a procissão das almas”
Passa um minuto da meia-noite. Na Governador Celso Ramos, a última Praiana do dia reduz a marcha antes de vencer as duas lombadas na curva final da avenida, rumo a Canto Grande. Dentro desse ônibus, amarelo com listras em degradê vermelho, talvez durma algum estudante universitário cansado, voltando de Itajaí ou de Balneário Camboriú. No mais, exceto pelo motorista e pelo cobrador, é provável que esteja vazio.
Choveu durante o dia inteiro. Agora, caem apenas umas gotas retardatárias. O céu está limpo e claro, dá para distinguir nuvens rosadas na direção do Oeste. Amanhece. No asfalto molhado da SC-412, passam alguns carros, separados por intervalos de minutos. Alguém caminha solitário na altura da “Volta do Almeida”. Na subida do morro, corre uma névoa rasteira, branca em contraste com o fundo iluminado de uma placa publicitária.
Bombas está quieta neste início de madrugada. O mar, ao contrário, mostra-se agitado. Linhas brancas de espuma saem do escuro e, uma após a outra, as ondas despencam na areia. Embora quieto, o bairro não está exatamente dormindo. Alguns estabelecimentos ainda funcionam. O “Restaurante do Olímpio”, por exemplo, recebe algumas pessoas.
Noutra esquina, um grupo conversa. Um carro pára rapidamente, pergunta algo a eles, depois segue vacilante. Um ciclista surge na avenida, as lanternas dos pedais refletindo os faróis que passam. Um pouco mais na frente, um sujeito de boné caminha quase no meio da pista, olha para trás e então decide seguir pela calçada. Há mais gente, sentada nas escadarias da fachada de um edifício no final da Leopoldo Zarling. Dessa altura, já dá para ver a torre da capela, iluminada num brilho amarelado, como o produzido por lâmpadas comuns.
Ao final da “Curva do Piolho”, no início da descida que conduz ao Centro, uma obra no calçamento dividiu a pista no meio, uma parte está interditada e ficou difícil passar. Mais adiante, a mesma obra transformou meia pista numa vala lamacenta.
Bombinhas está igualmente quieta, embora seja o início de um feriadão. Ali na frente, empregados recolhem as cadeiras de um restaurante e uma moça aguarda sentada no ponto de ônibus. O vigia do empreendimento hoteleiro mais vistoso do centro, a Vila do Farol, conversa com uma mulher. Quando amanhecer, será 2 de novembro, quinta-feira, dia de Finados. Por enquanto, é a Noite de Todos os Santos.
Meia volta e lá está, vista pelo lado de Bombinhas, a capela da Imaculada. A subida que conduz até ela se perde num breu absoluto. Lá em cima, porém, o cemitério surge iluminado. De perto, a igreja se apresenta muito branca. Um potente holofote despeja sua luz sobre a estrutura. Tudo está calmo, só se ouve a cantoria solitária de um grilo e o chiado do vento, que sopra muito forte e remexe as folhas das palmeiras e dos arbustos. Embaixo, cintilam as luzes da cidade.
Nessa calmaria, o coração experimenta uma ansiedade, receio de que a coragem seja posta à prova a qualquer momento. Mas nada se movimenta neste lugar, seja vivo ou morto. Mesmo assim, é melhor não arriscar demais. Na descida, uma mulher segurando uma sombrinha enrolada cruza a rua.
Bombas está mais calada, agora que é quase uma da manhã. Se algo primitivo ou sobrenatural ainda caminha por aqui, talvez tenha se recolhido aos cantos mais escuros, nos fundos da cidade. Um olhar furtivo para a escuridão das ruas transversais não dá indicação de que essa fantasiosa suposição possa estar correta. No morro, a névoa segue seu caminho e a única fileira de luzes que se vê ao longe é da iluminação pública do município de Itapema. Nada que se pareça com uma procissão do além.
Natural de Porto Belo (SC), Alcides Mafra começou sua trajetória no jornalismo em 1990, trabalhando como chargista e diagramador para jornais do litoral norte de Santa Catarina e Vale do Rio Tijucas. Em 1996, ajudou a fundar o jornal Pirão d’água, em Porto Belo, o qual editou durante cinco anos. Foi repórter das revistas Photos & Imagens e Photo Magazine e diretor de conteúdo do site iPhoto Channel. Trabalhou ainda como revisor e coordenador editorial da editora iPhoto. Formado em Jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), é autor do livro Contam os Antigos… História e lendas de Bombinhas (editora Univali, 2006) e um dos autores do projeto de documentário audiovisual Retratos de Porto Belo, contemplado pelo edital de cultura do município de Porto Belo em 2016 e homenageado com Moção de Parabenização pela Câmara Municipal de Porto Belo em 2017.