Em resposta a um comentário de Marcelo Sabin, que desde Porto Alegre acompanha as linhas tortas deste blogue, a propósito do meu último artigo, escrevi o seguinte: “Esta é uma das razões pelas quais, diferente de usar celular, não deixo de correr: mesmo que o trajeto seja sempre igual, a paisagem é sempre diferente”.
Não se trata de força de expressão, como a vez seguinte em que vesti os trapos que costumo chamar “meus tênis de corrida” e pus o pé na estrada, novamente sentido Araçá, facilmente constatou.
Tem vezes em que lamento a minha teimosia de não querer usar celular. A principal delas é quando me deparo com uma cena incrível e não tenho o maldito aparelho para fotografar.
Aconteceu ontem mesmo: fazia uma corrida quase no final do dia, maltratando as articulações após uma semana inteira de letargia, quando tive uma surpresa na estrada.
Nesses tempos todos de Pirão, não há dúvidas de que foi o Luiz o cara que mais viveu situações que eu poderia chamar de surreais. Responsável pelo departamento comercial do jornal, o Cândoco também fazia as fotos, servia de motorista e ainda dava uma mão na finalização de cada edição. Trabalho à beça.
Uma ocasião, um pouco antes do meio-dia, se não me engano, recebemos um chamado da delegacia. Havia um boi solto no Araçá (era época de farra do boi) e a polícia iria lá para capturar o animal.
O delegado, então, era Edsonir Soares, um sujeito polêmico, muita gente na cidade torcia o nariz para ele, pois atuava politicamente, mas gostava de fazer grandes operações policiais e tinha simpatia pelo jornal. Sempre que estava fazendo algo vultoso, chamava a gente.
Embarcamos no nosso fusca e fomos até o Araçá. Ao chegarmos quase no Estaleiro, lá estava o animal, na descida da rua, as orelhas abanando nervosas, olhando desconfiado para o policial militar que esperava, já com a arma na mão.
O boi havia sido financiado pelo vereador do bairro, o Alex Monteiro, daí o interesse do delegado em fazer cumprir a lei – eram opositores. A intenção era abater o bicho, mas Alex negociou a remoção dele e esperavam um caminhão para fazer isso. O problema era que o animal estava agitado e ameaçava sair correndo a qualquer momento…
O PM parecia também nervoso e apontava seu revólver em direção à cabeça do animal. Edsonir puxou a escopeta. Com a câmera na mão, o Candôco atravessou a rua e subiu no barranco do lado oposto, atento a qualquer lance.
Nisso, o animal ensaiou um passo, se mexeu um pouco mais… e começou a andar. Quase à queima-roupa, o PM atirou na cabeça do bicho e ele disparou! Passou por mim e ia passando pelo delegado, que engatilhou a escopeta e derrubaria o boi ali mesmo. No entanto, do outro lado, na linha de tiro, lá estava o Candôco, com a câmera na frente do rosto. Quando viu o Cândoco na mira, Edsonir baixou a arma e disparou por baixo do animal, que sumiu em disparada. A bala acertou o barranco, um pouco abaixo de onde o Cândoco estava, que desapareceu no meio da fumaceira.
Na minha lembrança, a ação aparece como num desenho animado. Parecia que o Candôco ia escorregando como gelatina pelo barranco, tamanho o susto. E perdeu a compostura: “Tás doido! Qués me matar!”, gritou para o delegado, completamente transtornado. Ainda hoje, lá pelos arquivos que o Luiz mantém do jornal, tem a foto, toda tremida, do momento em que o boi passa e o policial atira contra o Candôco.
O Edsonir, ainda hoje, sempre que encontra o Candôco, dá muitas risadas com o episódio, diz para quem quiser ouvir “eu quase matei esse cara!” e conta a história. Desconfio que em nenhum momento ele perdeu o controle da ação. Atirou mesmo foi para matar de susto o Candôco. E conseguiu.
Natural de Porto Belo (SC), Alcides Mafra começou sua trajetória no jornalismo em 1990, trabalhando como chargista e diagramador para jornais do litoral norte de Santa Catarina e Vale do Rio Tijucas. Em 1996, ajudou a fundar o jornal Pirão d’água, em Porto Belo, o qual editou durante cinco anos. Foi repórter das revistas Photos & Imagens e Photo Magazine e diretor de conteúdo do site iPhoto Channel. Trabalhou ainda como revisor e coordenador editorial da editora iPhoto. Formado em Jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), é autor do livro Contam os Antigos… História e lendas de Bombinhas (editora Univali, 2006) e um dos autores do projeto de documentário audiovisual Retratos de Porto Belo, contemplado pelo edital de cultura do município de Porto Belo em 2016 e homenageado com Moção de Parabenização pela Câmara Municipal de Porto Belo em 2017.