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Suor pelas trilhas da Costeira

“Dil, vamos correr uma de 30 devagarzinho amanhã, 6 horas da matina?”, convidou, pelo Facebook, o Coveiro. Era segunda-feira (20), um dia após a Meia Maratona de Balneário Camboriú. “Vamos na Santa Luzia e depois a trilha até o Zimbros”, detalhou o amigo, músico e viciado em corridas. As pernas ainda estavam moídas pelo esforço de domingo, mas só me ocorreu uma coisa para responder: “Simbora!”

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Selfie no morro de Santa Luzia. Ao fundo, Tijucas

Assim, antes que começasse a clarear, enquanto quase todo mundo aproveitava o feriado de Tiradentes para amaciar um pouco mais o travesseiro, fiz o primeiro pit stop no Cezinha, cúmplice nesse estranho ritual de autoimolação, e dali partimos para a casa do André. Trio reunido, dia clareando, seguimos rumo a Santa Luzia.

A primeira etapa da jornada ocorreu sem problemas. Chegamos ao pé do morro que liga aquele bairro de Porto Belo à Costeira de Zimbros e iniciamos a subida, que é íngreme, caminhando. A partir dali, seria uma tortuosa jornada subindo e descendo por trilhas que já se tornaram velhas conhecidas dos praticantes de corridas de aventura. As provas do gênero que acontecem na península passam por ali. Mas a minha relação com a Costeira vem de antes disso.

Em 1999, o finado jornal Pirão d’água realizou uma de suas mais memoráveis coberturas. Na época, havia uma polêmica em torno de uma proposta da prefeitura de Bombinhas. O executivo queria alterar o zoneamento daquela área para permitir a construção de uma “estrada panorâmica” que ligaria o município à BR 101 ― e de quebra, construções até 100 metros acima do nível do mar. Era a chamada Cota 100.

“Uma das regiões de maior beleza e importância econômica do município de Bombinhas, aproximadamente sete quilômetros de mata Atlântica, vegetação de costão e floresta quaternária, emoldurados por rochas, pequenas lagoas e praias quase intocadas”, assim descreveu o jornal aquele trecho de solo bombinense, que, sem dúvida, possui uma das mais belas coleções de praias agrestes do Estado.

Na ocasião, a pressão popular, comandada por associações de bairro e ambientais da cidade, freou a proposta. Por causa disso, quinze anos depois, pudemos reencontrar a famosa Gruta do Padre Jacó e beber da água límpida e abundante que escorre pelas pedras, numa pausa bem-vinda depois dos primeiros dez quilômetros. A luz filtrada pelas folhas iluminava a trilha em raios “bíblicos”, atenuando o cansaço de quase duas horas de esforço e sobe e desce constante, se equilibrando no terreno acidentado e escorregadio, tarefa especialmente penosa quando se tem o joelho um tanto avariado. Imaginar que uma região como aquela corria (corre) o risco de desaparecer, com a quantidade de mananciais que há e a crise hídrica que inferniza as altas temporadas, só comprova a nossa incapacidade de antecipar desafios futuros ― para dizer o mínimo.

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André e Cezinha na Praia Vermelha: “Natureza nativa”

A Costeira, nesta época do ano, é o que se pode chamar de santuário. Quase ninguém perturba a tranquilidade das praias de areia branca e água cristalina. Nessa manhã, apenas três cansados corredores tropeçavam pela orla, um ou outro pescador ocasional empoleirava-se no costão e os pássaros podiam cantar à vontade. Na praia Triste, quando estive lá por volta de 2003, vivia José Osnildo Soares. Naquela ocasião, eu o entrevistei para o jornal da faculdade: “Seu Osnildo conta que vive sem energia elétrica, geladeira ou televisão, só o acompanha um radinho a pilha. Nas noites da Costeira, percorre a propriedade apenas com uma vela ou lanterna. ‘Aqui é na base do Deus nos acuda’, diz. Os mantimentos busca em Santa Luzia, uma vez por mês. Ele caminha pela trilha e leva uma hora até chegar ao mercado mais próximo. A encomenda chega de barco. Muito do que come, entretanto, ele planta ou pesca. A rede que ele mesmo confeccionou fica imersa em frente de casa. Os pescadores da região é que a lançam ao mar, pois seu Osnildo não sabe nadar”. Na oportunidade, aos 52 anos, completava “dez anos de solidão” na Triste. Nessa terça, não encontramos ninguém na casa.

Praticamente três horas depois de iniciar a corrida ― que para o Coveiro e o Cezinha serviu de preparação para os 42 e 21 quilômetros, respectivamente, do Vila do Farol Indomit, que ocorre dia 15 de agosto, e para mim como prova de que essa coisa de cirurgia no joelho é “para os fracos” ― chegamos à comunidade de Zimbros. Precavido, André havia atulhado a mochila com suplementos e água, mas ainda parou num mercadinho para reforçar o rancho, comprando coca-cola (um repositor eficiente, explicou-lhe a nutricionista) e água.

Nessa altura do desafio, com as pernas entorpecidas, os pés doloridos e o fôlego escasso, chegamos enfim ao pé do morro de Zimbros. O sol já batia forte e foi um martírio subir. Sentia-me como um hebreu atravessando o deserto. Com suas curvas acentuadas e grande inclinação, o morro de Zimbros é um desafio e tanto para qualquer corredor, por experiente que seja. Uma vez que se alcança o cume, ainda é preciso rezar para que os cães que guardam a Reserva Morro de Zimbros e a propriedade em frente não estejam do lado de fora da cerca.

Os cães ladraram, a caravana passou. Embalados pela descida, decidimos fechar o ciclo (que “não tem fim”, como diz a música do Uniclãs gravada pelos meus parceiros de corrida) e voltar até a casa do André ― considerando que deixamos o carro do Cezinha lá, não havia muita escolha. No final, quatro horas de corrida/caminhada, quase 30 quilômetros de percurso e a satisfação de superar um grande desafio. Para quem se habitua a correr dez quilômetros, o triplo disso parece uma enormidade. Chegar ao fim da jornada e confrontar a proeza que cometeu ― e ainda melhor, tendo com quem compartilhar ― é um prêmio saboroso. O risco é sempre o mesmo: o de viciar na adrenalina.

Seria isso “oferecer o corpo em holocausto”? Vai saber…

20 graus na subida: meu relato dos 21km do Soloman

Na saída da picada que dá acesso à ponta direita da praia da Tainha, uma dupla combina parar para uma foto. Ofereço-me para clicá-los, mas eles, polidamente, declinam. Havia esquecido: atualmente, essa gentileza não é mais necessária. A moda é o selfie.

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Antes e depois: a saída em Zimbros e a chegada em 4 Ilhas, uma eternidade depois (foto: Elisabete Mafra)

Devia estar, nessa altura, pelo oitavo quilômetro da corrida. A largada dos 21 quilômetros do Soloman havia sido quase uma hora antes, na ponta direita da praia de Zimbros. Cerca de trinta corredores se alinharam na largada improvisada, animados, no final da manhã de sábado, 2 de agosto. Dia estava ensolarado, a temperatura em ascensão. Nada que lembrasse o inverno.

A chegada, em Quatro Ilhas, parecia a uma eternidade de distância. Correndo na areia da praia, a mochila que o André (Coveiro) gentilmente emprestou pesava na costas – inadvertidamente, havia abastecido com muita água. Também não a tinha ajustado direito, e ela dançava desajeitadamente a cada passada. Procurava, prematuramente, regular a respiração e fazer baixar a adrenalina. As pernas já doíam e eu tentava me convencer que, assim que o corpo aquecesse, a dor sumiria.

Do Zimbros para o início da praia de Canto Grande, na altura de Morrinhos. A areia fofa não ajudava e, na frente, alguns corredores já poupavam fôlego caminhando. O final da praia aparecia distante, minúsculo, e já me parecia impossível chegar até lá. Nas minhas contas, se chegasse inteiro até a Tainha, teria chances de terminar o percurso.

Finalmente, o início da trilha da Tainha e a promessa de sombra e um pouco de descanso, já que, seguindo a cartilha do André, iria poupar o fôlego galgando a passo as subidas. Já estava sem ar e não era o único. A trilha estava escorregadia, provavelmente em função do pé d’água da noite anterior, e era preciso cuidado. Mas a vista da baía de Zimbros compensava e não era raro quem ficasse boquiaberto com o visual.

Um pouco na frente, chapinhava na lama, com mais dois corredores à frente, quando passa pela gente o cara de que todos se admiravam no começo da corrida. Barbudo e praticamente em pelo, apenas de calção, o sujeito corria descalço, feito um aborígene. Passou pela gente como um foguete.

Na outra ponta da pequena praia da Tainha, um posto de abastecimento de água. Havia ainda muita na mochila, então sigo em frente. Hora de dar a meia-volta e iniciar a subida. Hora também de um lanche. Saco minha barra de cereal para o almoço. A subida é íngreme e procuro ânimo repetindo que “toda subida premia com uma descida”. Com esse mantra na cabeça e passando ileso por um cachorro que o garotinho, seu dono, acalma, chego à estrada.

Um pouco de plano e mais subida. Procurando nacos de sombra no caminho, conjecturo sobre a razão de estar ali. Predisposição genética, herança de nosso passado de caçadores-coletores, que nos gravou com o gosto pela vida ao ar livre, como afirmou Carl Sagan? Impulso irresistível pelo risco e a aventura, como sugere Jon Krakauer? Um pouco de abstração é bem-vinda nessas horas.

Enfim, as árvores param de apontar para cima e o azul do céu indica a descida. Ganho um abraço refrescante do vento, como que dizendo: “Agora está comigo parceiro, fica tranquilo. Vai ser bico”. Emparelho com outro corredor que me pergunta sobre qual distância percorremos. Chuto uns dez quilômetros. Pergunto sobre o tempo de corrida: uma hora e dezessete. Qual a temperatura? Depois de um tempo para que o celular ache o sinal, 20 graus. Parece quarenta…

Leonardo é de Curitiba e está um período treinando em Bombinhas. Já fez essa trilha. Com uma câmera Go Pro colocada sobre a fronte, vai gravando o percurso. Tem feito isso nas últimas provas de que participou, para montar um álbum de imagens.

Com o colega ao lado, estamos de volta ao nível do mar. Cruzamos rapidamente a Conceição e começamos a enfrentar a enormidade de areia da praia do Mariscal. Melhor pensar no que ficou para trás. A panturrilha esquerda começa a reclamar do esforço. Leonardo sugere correr um pouco na linha da maré para esfriar a perna. É o que faço, mas o cansaço é evidente. Diminuo um pouco a marcha e me concentro em seguir adiante: “Só até aquele guarda-sol ali”, “agora, só até aquele prédio lá”…

Uma eternidade depois, o fim da praia. No posto de abastecimento de água, recebo agradecido, com as mãos tremendo, o copo de água fresca. A pressão desaba e temo desmaiar ali mesmo. Adiante, o asfalto do morro do Mariscal oferece o consolo de uma caminhada. Com calma, batendo papo, eu e o Leonardo iniciamos a subida. Já são duas horas de corrida.

“Daqui, dependendo da descida, são uns quarenta minutos”, Leo tranquiliza. No topo, porém, a panturrilha trava. Devo agradecer ao Coveiro pelas meias de compressão. As câimbras teriam vindo mais cedo, com certeza. Consigo dar uma meia-sola na perna e descemos o morro, conversando sobre futebol (meu parceiro é atleticano, do Paraná).

Ao fim da descida, mais câimbras, e não só nas panturrilhas. Leonardo também enfrenta as suas. Mas conseguimos vencer o morrinho que leva à praia de Quatro Ilhas. Só que ainda falta um último desafio: é preciso dobrar à direita e subir o morro daquele lado, só um quilômetro para acabar, diz a moça que indica o caminho.

Na subida, mais inteiro, Leo dispara. Fico na companhia de uma corredora que nos havia ultrapassado no morro do Mariscal, mas errou o caminho na estrada de Quatro Ilhas. A subida é extenuante, estou à beira da exaustão. Damos a volta e, para compensar, tem o visual do costão, com as ondas batendo tão forte quanto o coração no peito. Acelero na descida, agoniado por chegar, mas há outra subida e o fôlego some. Subo cambaleando, sob os olhares de um grupo que aproveita o sol, e desço com cautela, tentando economizar o gás para o final.

De volta à praia, e já dá para ver a concentração na outra ponta. Mas a panturrilha trava e dou uma parada. Tento correr novamente, não dá. “É câimbra, né?”, pergunta um corredor que passa por mim. “Tive que fazer o último trecho ‘rolando'”, ele me conta. Pisando com os calcanhares, sigo em frente. De cócoras e com a câmera na frente do rosto, o Fabrício, da Foco Radical, está novamente clicando o pessoal. Não quero sair na foto me arrastando…
Nessas alturas, já procuro pela Bete e a Cissa na praia. Vem-me à cabeça o verso do Cazuza, “sem pódio de chegada nem beijo de namorada”. Mas é só um instante. Logo diviso a Bete. O pessoal que chegou antes está ali e certamente aplaude. Não ouço. Daniel Meyer, que é quem organizou a prova, pergunta meu nome. “Alcides Mafra”, ainda lembro. Digo a ele que o Coveiro mandou um abraço. Ele me abraça em retribuição, diz que o André é um grande cara. A Cissa, minha filha, chega e eu me abaixo para abraçá-la. É hora de dizer uma palavra que vinha ensaiando bem antes, lá na Tainha, quando pensei em escrever este relato. Três sílabas apenas, uma ideia simples. Mas poderosa como a vontade: “Consegui”.

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Foto: Elisabete S. Silva

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