Amanhã será a Sexta-feira da Paixão e permanece a calmaria das últimas semanas. Para quem, nos últimos anos, acompanhou o auge e a agonia da farra do boi, quando esta virou caso de polícia, parece que temos, como diria Nelson Rodrigues, “um silêncio de mil catedrais”. Claro, tudo pode acontecer de hoje até domingo.
No entanto, parece realmente que a farra está sepultada. Houve casos isolados, repreendidos com brutalidade até. As próximas gerações, muito provavelmente, saberão dessa tradição só de ouvir falar.
Acho que já comentei por aqui, mas lembro com saudade do tempo em que, ainda garotos, acompanhávamos a farra por trás das janelas gradeadas lá da casa da minha mãe. Empoleirados no sofá, eu e os irmãos lutávamos contra o sono, espiando a rua vazia e escura, ouvindo o rumor da conversa dos adultos na esquina e os ecos distantes distantes do pessoal que “brincava” com o boi.
Se tivéssemos sorte, o animal passaria correndo feito uma assombração defronte nossos estarrecidos olhos. Talvez víssemos mesmo o espetáculo do boi lançando adiante algum farrista mais ousado.
Mais tarde, já maiores, junto com os outros garotos, pudemos “correr atrás do boi”. Devidamente paramentados (bermuda velha por cima de uma calça de moletom, outro moletom amarrado atravessado no peito e kichutes), ficávamos pendurados nas árvores, esperando o grande momento da “soltada”, lá onde hoje está o mercado do Romilton. Foi quando surgiram as primeiras lendas, com a do Jackson que, dizem, subiu num espinhento pé de “mamica-de-porca para escapar do boi. A árvore, testemunha silenciosa da veracidade ou não do “causo”, não existe mais – seu Zé Antônio a derrubou.
Depois vieram os mangueirões, as carreiras pela cidade, as semanas inteiras de soltadas que paravam as aulas no Tiradentes, caminhões boiadeiros em comboio pela cidade. Mais tarde, com a proibição, tudo foi se acabando.
Abandonei cedo a farra, primeiro por covardia, depois por desgostar da tradição. Não há como negar, é uma prática violenta. Depois de adulto, ainda participei de algumas, pois toda a turma queria ir, não havia jeito. O encanto, porém, já havia passado.
Nos tempos de Pirão, cobrimos algumas vezes a farra do boi. A proibição era assunto recente e a revolta dos farristas contra a imprensa, em especial, era enorme. O Candôco corria um especial perigo, pois, como fotógrafo, era a parte mais visível do “inimigo”. Uma foto memorável daquele tempo (preciso achá-la nos arquivos do jornal) foi tirada em Canto Grande. Um caminhão passava na avenida com um bando de farristas em cima. O boi não se via.
O Candôco subiu num muro e conseguiu fotografar o animal deitado amarrado no fundo da carroceria, congelando na imagem também as expressões de raiva e ameaça dos farristas. O jeito foi sair de lá rapidinho.
No Pirão, creio que exercíamos uma espécie de autocensura com relação à farra. Lembro de um editorial que escrevemos, no qual defendíamos a tradição, mas dávamos razão à proibição – ambiguidade maior, impossível. Ou seja, saíamos pela tangente, embora nem, eu nem o Luiz fôssemos a favor da “brincadeira”. No fundo, é algo parecido com o que ocorreu até há bem pouco, quando políticos locais defendiam e até incentivavam a prática, pois não queriam ficar mal com seus eleitores.